Há um grupo teatral chamado Opinião. Vocês o conhecem e já provaram o talento de seus artistas e dos seus textos. Mas vejam que nome simples, despojado, sem ênfase. Apenas Opinião e nenhum ornato, nenhum arabesco. Em outros tempos, seus fundadores teriam escolhido um título mais enfeitado do que um índio de carnaval. Em vez de Opinião, seria algo assim como Estrela Matutina, Rosa de Cetim ou Os Amantes da Arte. Este último coincide, exatamente, com o gosto das velhas gerações.
Os Amantes da Arte seriam o Ferreira Gullar, o Oduvaldo Viana Filho e uns poucos mais. Entre parênteses, o citado Viana é em verdade Vianinha, ou seja, o único diminutivo nato que se conhece em qualquer idioma. O Viana já nasceu Vianinha e para todo o sempre. Certa vez, o Vianinha escreveu para um amigo e assinou “Viana”. O destinatário achou que estava lendo uma vil carta anônima.
Eis o que eu queria dizer: — considero Opinião um nome impróprio e, repito, um nome alienado. Com as técnicas modernas de promoção, o homem cada vez pensa menos. É o jornal, é o rádio, é a televisão, é o anúncio, é o partido que pensa por nós. Nós “achamos” o que os outros “acham”. A “opinião” deixou de ser um ato pessoal, uma posição solitária, um gesto de orgulho e desafio. Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio. Há toda uma massa de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios feitos. Ainda outro dia, ouvi um sujeito falar sobre a França. Inflexionava como as manchetes.
O sujeito que opina por conta própria, que simplesmente opina por conta própria, tem algo de suicida. Em verdade, ele se compromete ao infinito. E se a opinião não existe, e se ninguém a tem, entendo que o grupo de Ferreira Gullar e do Vianinha devia chamar-se, realmente, Rosa de Cetim ou Os Amantes da Arte. Dito isto, passo ao tópico seguinte.
Eis o que importa ressalvar: — uma opinião, mesmo repetida, significa um risco pessoal e patético. Sem o querer, o sujeito pode pôr em jogo a própria salvação. É o que acontece com certo professor da puc que será o grande personagem desta crônica. Explico por que não lhe direi o nome. Certo diretor de jornal era contra o ponto-parágrafo. Doutrinava ele: — “É um espaço perdido”. O nome do professor referido gastaria um espaço irrecuperável. Direi apenas que é de meia-idade, católico “pra frente”, amigo de d. Hélder e do dr. Alceu, paladino das pílulas, do amor livre. Em suma: — um progressista.
Muito bem. E uma de suas aulas recentes foi sobre ou, melhor dizendo, contra o imperialismo. Aliás, não foi bem contra o imperialismo e sim contra os Estados Unidos. Partia ele do seguinte princípio, a saber: — o americano compra tudo. E, para não ficar no vago, no incorpóreo, no indeterminado, ele cita o exemplo concreto do sr. Café Filho. Conta que os Estados Unidos resolveram dar um golpe, aqui no Brasil. Café era, então, presidente da República e, como costumam ser os nossos presidentes, um lacaio do imperialismo yankee. Podemos imaginar a cena. Chega o americano atirando patadas truculentas em todas as direções. Pergunta: — “Quanto queres, ó Café, para dares um golpe?”. O nosso presidente limpa um pigarro, olha para o teto e diz uma quantia. Como bom comprador, o americano não vai no primeiro lance. Pechincha: — “Tu te esqueces, ó Café, que o presidente brasileiro é o mais barato da América Latina?”. E, então, para não perder o freguês, o sr. Café Filho teve de fazer um abatimento.
Ao embolsar a meia dúzia de dólares, o então presidente da República ainda suspira: — “Vou ter que rachar com alguns generais”. Daí partiu ele para dar o golpe. Pelas razões que todos conhecem, houve o fracasso total. Mas justiça se lhe faça: — o sr. Café Filho foi um corrupto honesto. Fez o diabo para servir ao patrão. Eis a pergunta que cabe fazer: quem era, para o professor da puc, o nosso Café Filho? Um sujeito que tomava dinheiro dos americanos para trair o Brasil. Essa torpe imagem presidencial foi oferecida a quarenta ou cinqüenta jovens de ambos os sexos. Imaginem a idéia que, imediatamente, essa platéia imatura passou a fazer do Brasil e do brasileiro.
Ora, o presidente da República é uma faixa, é uma casaca, é uma cartola, é o Hino Nacional. Por outro lado, ele não pode ser apenas uma pose. É preciso que, por trás da pose, exista uma noção qualquer de honra. E vem um professor da puc e, com um frívolo piparote, põe por terra toda uma série de nobilíssimos valores. Em sua aula, ele dava uma opinião sobre este país, sobre todos nós e cada um de nós, sobre os nossos costumes e a nossa alma. Se o presidente da República se vendia, com tão cordial e risonha facilidade, e, ainda mais, por um preço de avenida Passos — que dizer dos outros? Sim, os ministros também deviam estar na gaveta. Afinal, um ministro também precisa pagar o sapato da mulher e o leite do caçula. E os não-presidentes, os não-ministros? Nós, os barnabés, os funcionários, os bancários, os intelectuais, os estudantes — seríamos outros tantos corruptos, e baratíssimos.
Cada aluno do citado professor há de ter a seguinte imagem do Brasil: — uma nação fazendo fila na embaixada norte-americana. São homens e mulheres deste país. Sujeitos berram: “Eu sou barato! Eu sou barato!”. Grã-finos, de mãos postas, soluçam: — “Me comprem! Me comprem!”. Mas eis o que me pergunto: o tal professor tem mesmo essa opinião? Não. Ele a recolheu nas esquinas, nos botecos, nos salões, nos consultórios, por toda a parte, Ah, o brasileiro continua sendo aquele Narciso às avessas que cospe na própria imagem. A nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.
Pois bem. O que o homem disse não passa de uma espantosa mentira, de uma hedionda calúnia. E pelo contrário: — uma das coisas lindas desta terra é a pobreza do ex-presidente. Vocês, decerto, já ouviram falar daquele sujeito que entrou pobre na Sicília rica e saiu rico da Sicília pobre. Inversamente, o sr. Café Filho entrou pobre na Presidência e saiu mais pobre. Mesmo quando substituiu Getúlio, era um pau-de-arara. Nunca, em momento nenhum, deixou de ser o pau-de-arara. De casaca e pau-de-arara, de cartola e pau-de-arara. E quando deixou de ser presidente, teve de arranjar, às pressas, um emprego. Do contrário, ia morrer de fome. E se, por fatalidade, perder esse emprego, terá que se fingir de cego e postar-se na esquina da Ouvidor. Cada um de nós pingará então uma moeda no seu pires de falso cego. De mais a mais, a pobreza do sr. Café Filho é um caso de constatação visual. Façam-no sorrir. É a dentadura mais feia e, ao mesmo tempo, mais comovente do Brasil. Repito: — como pobre vocacional, ele não teve dinheiro, nunca, para arranjar um protético melhor.
[28/5/1968]
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
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