quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

OITENTA MILHÕES DE VENDIDOS

Há um grupo teatral chamado Opinião. Vocês o conhecem e já provaram o talento de seus artistas e dos seus textos. Mas vejam que nome simples, despojado, sem ênfase. Apenas Opi­nião e nenhum ornato, nenhum arabesco. Em outros tempos, seus fundadores teriam escolhido um título mais enfeitado do que um índio de carnaval. Em vez de Opinião, seria algo assim como Estrela Matutina, Rosa de Cetim ou Os Amantes da Arte. Este último coincide, exatamente, com o gosto das velhas gerações.
Os Amantes da Arte seriam o Ferreira Gullar, o Oduvaldo Viana Filho e uns poucos mais. Entre parênteses, o citado Via­na é em verdade Vianinha, ou seja, o único diminutivo nato que se conhece em qualquer idioma. O Viana já nasceu Vianinha e para todo o sempre. Certa vez, o Vianinha escreveu para um amigo e assinou “Viana”. O destinatário achou que estava len­do uma vil carta anônima.
Eis o que eu queria dizer: — considero Opinião um nome impróprio e, repito, um nome alienado. Com as técnicas mo­dernas de promoção, o homem cada vez pensa menos. É o jor­nal, é o rádio, é a televisão, é o anúncio, é o partido que pensa por nós. Nós “achamos” o que os outros “acham”. A “opinião” deixou de ser um ato pessoal, uma posição solitária, um gesto de orgulho e desafio. Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio. Há toda uma massa de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios fei­tos. Ainda outro dia, ouvi um sujeito falar sobre a França. Inflexionava como as manchetes.
O sujeito que opina por conta própria, que simplesmente opina por conta própria, tem algo de suicida. Em verdade, ele se compromete ao infinito. E se a opinião não existe, e se nin­guém a tem, entendo que o grupo de Ferreira Gullar e do Vianinha devia chamar-se, realmente, Rosa de Cetim ou Os Aman­tes da Arte. Dito isto, passo ao tópico seguinte.
Eis o que importa ressalvar: — uma opinião, mesmo repe­tida, significa um risco pessoal e patético. Sem o querer, o su­jeito pode pôr em jogo a própria salvação. É o que acontece com certo professor da puc que será o grande personagem des­ta crônica. Explico por que não lhe direi o nome. Certo diretor de jornal era contra o ponto-parágrafo. Doutrinava ele: — “É um espaço perdido”. O nome do professor referido gastaria um espaço irrecuperável. Direi apenas que é de meia-idade, católi­co “pra frente”, amigo de d. Hélder e do dr. Alceu, paladino das pílulas, do amor livre. Em suma: — um progressista.
Muito bem. E uma de suas aulas recentes foi sobre ou, me­lhor dizendo, contra o imperialismo. Aliás, não foi bem contra o imperialismo e sim contra os Estados Unidos. Partia ele do seguinte princípio, a saber: — o americano compra tudo. E, pa­ra não ficar no vago, no incorpóreo, no indeterminado, ele cita o exemplo concreto do sr. Café Filho. Conta que os Estados Uni­dos resolveram dar um golpe, aqui no Brasil. Café era, então, presidente da República e, como costumam ser os nossos pre­sidentes, um lacaio do imperialismo yankee. Podemos imagi­nar a cena. Chega o americano atirando patadas truculentas em todas as direções. Pergunta: — “Quanto queres, ó Café, para dares um golpe?”. O nosso presidente limpa um pigarro, olha para o teto e diz uma quantia. Como bom comprador, o americano não vai no primeiro lance. Pechincha: — “Tu te esque­ces, ó Café, que o presidente brasileiro é o mais barato da Amé­rica Latina?”. E, então, para não perder o freguês, o sr. Café Fi­lho teve de fazer um abatimento.
Ao embolsar a meia dúzia de dólares, o então presidente da República ainda suspira: — “Vou ter que rachar com alguns generais”. Daí partiu ele para dar o golpe. Pelas razões que to­dos conhecem, houve o fracasso total. Mas justiça se lhe faça: — o sr. Café Filho foi um corrupto honesto. Fez o diabo para servir ao patrão. Eis a pergunta que cabe fazer: quem era, para o professor da puc, o nosso Café Filho? Um sujeito que tomava dinheiro dos americanos para trair o Brasil. Essa torpe ima­gem presidencial foi oferecida a quarenta ou cinqüenta jovens de ambos os sexos. Imaginem a idéia que, imediatamente, essa platéia imatura passou a fazer do Brasil e do brasileiro.
Ora, o presidente da República é uma faixa, é uma casaca, é uma cartola, é o Hino Nacional. Por outro lado, ele não pode ser apenas uma pose. É preciso que, por trás da pose, exista uma noção qualquer de honra. E vem um professor da puc e, com um frívolo piparote, põe por terra toda uma série de nobilíssimos valores. Em sua aula, ele dava uma opinião sobre este país, sobre todos nós e cada um de nós, sobre os nossos costumes e a nossa alma. Se o presidente da República se vendia, com tão cordial e risonha facilidade, e, ainda mais, por um preço de avenida Passos — que dizer dos outros? Sim, os ministros tam­bém deviam estar na gaveta. Afinal, um ministro também pre­cisa pagar o sapato da mulher e o leite do caçula. E os não-presidentes, os não-ministros? Nós, os barnabés, os funcioná­rios, os bancários, os intelectuais, os estudantes — seríamos ou­tros tantos corruptos, e baratíssimos.
Cada aluno do citado professor há de ter a seguinte ima­gem do Brasil: — uma nação fazendo fila na embaixada norte-americana. São homens e mulheres deste país. Sujeitos berram: “Eu sou barato! Eu sou barato!”. Grã-finos, de mãos postas, so­luçam: — “Me comprem! Me comprem!”. Mas eis o que me per­gunto: o tal professor tem mesmo essa opinião? Não. Ele a recolheu nas esquinas, nos botecos, nos salões, nos consultórios, por toda a parte, Ah, o brasileiro continua sendo aquele Narci­so às avessas que cospe na própria imagem. A nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.
Pois bem. O que o homem disse não passa de uma espan­tosa mentira, de uma hedionda calúnia. E pelo contrário: — uma das coisas lindas desta terra é a pobreza do ex-presidente. Vo­cês, decerto, já ouviram falar daquele sujeito que entrou pobre na Sicília rica e saiu rico da Sicília pobre. Inversamente, o sr. Café Filho entrou pobre na Presidência e saiu mais pobre. Mes­mo quando substituiu Getúlio, era um pau-de-arara. Nunca, em momento nenhum, deixou de ser o pau-de-arara. De casaca e pau-de-arara, de cartola e pau-de-arara. E quando deixou de ser presidente, teve de arranjar, às pressas, um emprego. Do con­trário, ia morrer de fome. E se, por fatalidade, perder esse emprego, terá que se fingir de cego e postar-se na esquina da Ou­vidor. Cada um de nós pingará então uma moeda no seu pires de falso cego. De mais a mais, a pobreza do sr. Café Filho é um caso de constatação visual. Façam-no sorrir. É a dentadura mais feia e, ao mesmo tempo, mais comovente do Brasil. Repito: — como pobre vocacional, ele não teve dinheiro, nunca, para ar­ranjar um protético melhor.

[28/5/1968]

Nenhum comentário: