quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

UM MUNDO DE CANALHAS

Há uns dois meses, talvez, comecei assim uma “Confissão”: — “O líder é um canalha”. No dia seguinte, um amigo bate o telefone para mim: — “Que piada é essa?”. Senti o seu escân­dalo total. Insistia: — “Canalha como? E Gandhi? Você acha Gandhi um canalha?”. Tive de explicar-lhe que achava Gandhi um ser maravilhoso. Sua vida parecia-me perfeita, irretocável. Mas Gandhi era, justamente, o exemplo errado. Eu falava do lí­der bem-sucedido, sim, do líder que toma o Poder.
O meu amigo berrava no telefone: — “Sua tese não resis­te”. Não resistia, afirmava ele, a um sopro, desses que apagam uma velinha de aniversário. Discutimos e não nos entendemos. Ele não aceitou os meus argumentos, nem aceitei os seus. Des­ligou praguejando: — “Essa, não!”. Sessenta dias depois, mais um Kennedy, Bob, é assassinado. No momento em que anun­ciava uma vitória eleitoral, levou uma bala na cabeça.
O fato de ter sido na cabeça caracteriza, a meu ver, a lúci­da e técnica premeditação. Não foi, portanto, um ato de selva­gem e obtuso fanatismo. O que se percebe é que o criminoso ou, pluralizando, os criminosos previram tudo. Tiro na cabeça porque, em caso de sobrevivência, nada restaria de Bob Ken­nedy. Seria um idiota, vivo e idiota, a uivar, eternamente.
Ao falar do canalha, que a liderança exige, não me refiro, obviamente, ao líder sem poder. Acho que estou sendo claro. Mas repito: — o “líder sem poder” não é líder. Objetará alguém que John Kennedy chegou à presidência. Mas era tão pouco lí­der e tão pouco canalha que foi assassinado. O verdadeiro líder (realmente canalha) não morre, mata. Manda matar. Ou é homi­cida ou não é líder.
O leitor há de pensar, sem dúvida, na figura recente de Joseph Stalin. Nunca levou um tiro de ninguém. E matou milha­res, matou milhões. Era o canalha puro. Só tinha de humano o feitio do nariz, as botas e o bigodão. E pisou na cara de todo um povo. Quando os camponeses insinuaram uma resistência, Stalin matou milhões de fome punitiva. Nenhum homem faria isso. E Stalin o fez porque nada tinha a ver com o ser humano. Mais tarde, achou conveniente fazer o pacto germano-soviético. Apertou a mão de Ribbentrop, com um riso enorme e tor­pe. Foi o co-autor da guerra nazista.
Comparem os dois, Joseph Stalin e John Kennedy. Este amou e teve, até o último momento, a presença da “mulher bo­nita”. Quando uma bala arrancou-lhe o queixo, Jacqueline ria, a seu lado; e ainda ria, ou sorria, quando a cabeça do marido ensangüentou-lhe o colo. Em seguida, “a mulher bonita” su­biu, de gatinhas, na capota. E chorava grosso como um homem.
Uma Jacqueline seria impossível na vida de Joseph Stalin. O verdadeiro líder não deseja, simplesmente não deseja. O de­sejo seria uma degradação. Poderão objetar que Napoleão teve Josephina. Era bonita, como quer Hollywood. Mas traiu Bonaparte. A “mulher bonita” tem sentido na vida do líder quando o trai. Assim o nosso John Kennedy, que tinha uma segunda pre­sidência assegurada, nem chegou a completar a primeira. Era o falso líder. Um Stalin teria que morrer na hora própria, nem antes, nem depois. John Kennedy morreu no momento errado.
Bob Kennedy nunca seria líder porque, como o irmão, não era um canalha. Tão pouco pulha que amou e, pior, amou a pró­pria esposa. Vejam os casais nossos conhecidos. Todos, todos, com duas ou três exceções, estão crispados de tédio conjugai. Lembro-me de que, certa vez, escrevi: — a origem do câncer está no tédio conjugai. E a leucemia infantil é;o tédio dos pais destruindo os filhos. Mas Bob Kennedy não conheceu a mono­tonia quase obrigatória das longas convivências. Dirá algum lei­tor bandalho que nunca se sabe. Mas sabemos. No caso de Bob sabemos.
Diante de nós estão os dez filhos. Sei, claro, que muitos casais fingem uma cínica felicidade. Mas, meu Deus, ninguém finge dez filhos. Nenhuma mulher pode fingir, por dez vezes consecutivas, nove meses de gravidez. E não preciso falar dos filhos já nascidos. Falo da presente gravidez. Ao celebrar a vitória na Califórnia, e momentos antes do tiro, Bob Kennedy tinha, a seu lado, uma gravidez. E seria absurdo imaginar Joseph Stalin, o canalha, no palanque da praça Vermelha, lado a lado com uma esposa grávida. As tropas passando e o filho de Stalin virando cambalhotas no ventre materno.
Mas esse filho não nascido, esse garoto que começou a ser órfão muito antes do parto — nada tem a ver com o líder. Te­nho visto o efeito do assassinato em nossas esquinas e em nos­sos botecos. O que assombra o torcedor do Flamengo é o abuso numérico: — onze filhos. Ou por outra: — dez com um por nas­cer. Essa ninhada parece reivindicar um prêmio do Chacrinha.
Ora, os dois Kennedys assassinados têm o sentimento ob­sessivo da família. E os irmãos, e os pais. Aí está mais uma falha de líder. Com um mínimo de isenção e de objetividade, qual­quer um perceberá que a família começou a morrer. Os paren­tes ainda convivem por hábito adquirido de passadas gerações. Mas os vínculos estão apodrecidos. E a estrutura familiar vai, aos poucos, se desintegrando. Ao mesmo tempo, todos se jun­tam contra a família. Entrei, outro dia, num lar que era uma co­va de ódios. Quantos e quantos jovens levam no coração o ódio ao pai.
Ali, outro dia, ocorreu um episódio vil e triste como a morte de um Kennedy. Certa mãe entrou numa igreja e pediu ao pa­dre notícias do filho. O sacerdote fez um comício: — “Está me tomando por espião? Por delator? Rua, rua!”. A mulher, lívida, balbuciava: — “Mas que é isso?”. E o padre: — “Aqui, nessa igreja, só entra jovem! Pai, mãe, não põem os pés aqui! Retire-se!”. Parece exagero caricatural. Mas a cena se passou exatamen­te assim, sem nenhum ornato, nenhum retoque. O sacerdote reagiu como um vilão de cinema mudo, desses que usavam olheiras de rolha queimada.
Vou concluir repetindo: — o falso líder Bob Kennedy teria de se frustrar porque não era um canalha. Essa esposa, com os flancos pesados de maternidade, grávida do décimo primeiro, diz tudo. Diz que Bob Kennedy foi assassinado por um mundo que não sabe amar — um mundo de canalhas.

[10/6/1968]

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