domingo, 1 de março de 2009

A ATRIZ INTELIGENTE

Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência.) E não se trata do estilo de representação. Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Da­ma das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.
Mas o que me impressiona não é dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real. Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salva­ram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocor­reu a primeira audição do Danúbio azul.
Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românti­cos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no pal­co. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D’Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.
Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D’Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu “relações-públicas” espalhar que pagava o este­ta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.
Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos. Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — “Estou amando! Estou amando!”. A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Fi­nalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.
Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?”. Outra pergunta: — “E por que não há mais Duse, nem há mais D’Annunzio?”. Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.
Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Res­ta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos.) Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicida­de, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a ou­tra não.
Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unani­midade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma fra­se própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas decla­rações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras.) Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando.
O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro so­mente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há tam­bém a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E co­mo a tv é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três verdades eternas.
A notável atriz está representando, no momento, uma pe­ça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exa­tamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante respos­ta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calcu­lada. E, por fim, respondeu: — “A peça é o problema de opção”.
Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — “O problema da nossa época é a opção”. Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo. Vejamos: — “O problema de nossa época é a opção”. Isso, dito por qual­quer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago “bom-dia”, dito da maneira certa, ad­quire uma profundeza inimaginável. E a “opção” da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — “Inteligência aqui é mato”.
Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro. Tenho um amigo que é um re­trógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de “a pró­pria Idade Média”. Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — “Eu, que sou a Idade Média” etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românti­cas. Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poe­sia dramática exige. Quanto à “opção”, não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados. É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de senti­mentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias fei­tas. A última passeata mostrou como é rala a nossa auto­determinação.
Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Pal­meira trepou no automóvel e disse: — “Estamos cansados”. Nin­guém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga.) Em seguida, ele acrescentou: — “Vamos sentar”. Fa­lava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sa­cerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único pre­to ou um único operário). Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia. Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D’Arc.
[30/7/1968]

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