sábado, 14 de fevereiro de 2009

CAÇA-NÍQUEIS

Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revis­ta de nus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós! Tudo que tenha um vago sotaque norte-americano já exala o terror. Finalmente, tomo coragem e abro o envelope.
Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, o correspondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega para co­lega. Pedia, em suma, informações urgentes sobre “Palhares”, o brasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodos originais e revolucionários de educação sexual. Playboy queria biografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc. Li e re­li, na mais absurda das perplexidades.
Eis o que me perguntei: — “Palhares, que Palhares?”. Por um desses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui ou alhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palha­res. Seria Tavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, de repente, invadia a minha vida era o desconhecido to­tal, jamais visto, jamais cumprimentado. O bilhete dava, embai­xo, no canto da página, um número de telefone. Liguei.
Por sorte, encontrei o diabo do correspondente. Disse-lhe a feia e humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo ou morto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, no momento, o Palhares é o nome obsessivo, a figu­ra obrigatória? Só se falava no Palhares. Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, as anedotas do Palhares, as piadas do Pa­lhares. Saí do telefone humilhadíssimo. Numa amargura medo­nha, pensava na idéia que a Playboy faria de mim, o único bra­sileiro que desconhecia o Palhares!
Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num bote­co, tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhas profundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misterioso Palhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhe­cia, sim, e de longa data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas. Coisa de espantar: — o Palhares era um so­brenome. O seu nome por extenso é uma maciça impossibili­dade. Ele próprio o diz: — “Desde garotinho, sempre fui Pa­lhares, e só Palhares!”.
Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nos­so herói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha. Não sei por inconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho estarrecido: — “O que não respeita nem as cunhadas!”.
Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi de uma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. To­das as portas se abriram para o canalha. No emprego, por coin­cidência ou não, o chefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário. Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela, cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me que uma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio, suspirava: — “Adoro o Palhares!”. Dizia isso e tinha, no pescoço, um colar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio’s e o vejo com um vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — “Que é isso?”. E ele, com ar­dente seriedade: — “O Cristo!”. Em seguida, desembrulha e mostra o retrato de Guevara. Lá estava o guerrilheiro, de boi­na, a cara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.
Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — “Rapaz, a pia­da tem limite”. Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — “A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quan­do, mudar de Cristo”. Olha para os lados e baixa a voz: — “Es­te retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verda­deiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada”. E, no fim, deu-me o conselho: — “Você tem de ser socialista. É o golpe”.
Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, um dia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educação sexual. Bati o telefone: — “Escuta, Palhares. Que ne­gócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por ci­ma?”. Fiz-lhe mesmo a pergunta contundente: — “Desde quan­do deixaste de ser analfabeto?”.
Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: — não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso impudor: — “Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete”. Fiz a pergunta impaciente: — “Mas qual é o teu colégio?”. Ao ouvir falar em colégio, Pa­lhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua: — “Co­légio? Me achas com cara de colégio?”. Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: — “Faço educação sexual a domi­cílio. Percebeste? A domicílio”.
Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-se o bem-sucedido total: — “Podes chamar-me de analfabeto. E eu sou analfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bê-a-bá para ensinar educação sexual”. Conversamos duas horas. Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presente época. “Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizer tudo, fazer tudo, pensar tudo.”
Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — “Resumin­do, qual é o conselho que você me dá?”. Fingiu modéstia: — “Quem sou eu pra te dar conselhos?”. Insisti. E, então, o cana­lha tira um pigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — “Seja o ex-católico. No momento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão”.
Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu já queria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las. Pergunto: — “Que história é essa de ex-católico?”. O nosso Palhares foi preciso: — “É o seguinte. Re­para. Há uma colossal maioria católica. Não há? É o óbvio”. E continuou. Segundo ele, não adianta nada ser “maioria”. Quem tem o poder de decisão, e o exerce furiosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palhares cita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, os minoritários como in­fluem, como decidem, como agitam. E a maioria católica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada. Ouvi o Pa­lhares sem interrompê-lo. Terminou com uma profecia jucunda:
“Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda sere­mos o maior povo ex-católico do mundo”.

[19/6/1968]

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