sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

OS ASSASSINADOS

Disse não sei quem que os homens se dividem em dois gru­pos: — “assassinos” e “assassinados”. Ou o sujeito mata ou, se não mata, morre. Portanto, segundo esse autor, cujo nome não me ocorre, não há hipótese de morte natural. Mesmo os “assassinos” são, por sua vez, “assassinados”. Por isso, o fran­cês Paul Valéry chegou a imaginar, para si mesmo, o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Paul Valéry — assassinado pelos outros”.
Houve, porém, um momento, na minha vida, em que “to­dos” eram assassinos. Foi quando morreu meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues. Não sei se me entendem. O que eu quero dizer é que “todos” eram assassinos, e Roberto, a única vítima. Foi ferido no dia 26 de dezembro de 1929. Ele conversava co­migo. Uma voz pediu: — “Pode-me dar um minuto de aten­ção?”. Era na redação de Crítica. Os passos caminharam até à sala seguinte. Porta de vaivém. Roberto faz a volta da mesa e caminha para lá.
Por minha vez, encaminho-me para a escada. Ia tomar um refresco no botequim da esquina. Paro com o estampido. Hou­ve uma pausa entre o tiro e o grito (e foi um grito de quem vai morrer). Um dos presentes era o detetive Garcia. Com seu re­flexo profissional, tirou o revólver; e foi de arma em punho que invadiu a sala da frente. Roberto está de joelhos, com as duas mãos agarrando a mão que o ferira.
Da serraria do lado, os operários subiam a velha escada gasta de muitas gerações. Roberto tinha 23 anos, era o homem mais bonito que vi até hoje. Uma bala interrompeu, para sempre, a obra que amadurecia na sua alma atormentada. Levado para o pronto-socorro, lá morreu dois dias depois. Eu continuava a ou­vir a voz: — “Vim matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”. Paro de escrever. A voz está dizendo, como há 39 anos atrás: — “Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”.
A redação armada em câmara-ardente. Eu, com dezessete anos, era abraçado. Um velho agarrou-se a mim: — “O nosso Roberto”. E eu tinha pena, vergonha, remorso de estar vivo. Muitos anos depois, na minha peça Anjo negro, há esta imagem: “No enterro sobra sempre uma flor. Uma flor fica boiando no soalho”. E, de fato, naquele dia, eu vi uma flor boiando no soa-lho. Não sei se alguém a pisou. Passei toda uma madrugada ve­lando o sono dos círios.
O último a se despedir de Roberto foi meu pai. “Eu te vin­go!”, soluçou. No fim, chegou Melo Viana, o vice-presidente da República. Abraçou-se a meu pai, que repetiu: — “Essa bala era para mim”. E, depois, o enterro saindo. Era uma manhã de tanto céu que a própria sombra era azulada, lunar. Dois meses depois, morria meu pai. Sua agonia durou quinze dias. Moráva­mos numa colina. E, na última noite, da esquina já se ouvia a sua dispnéia. Morreu tão órfão do próprio filho.
Eis o que aprendi com Roberto e meu pai: — o importante é não matar. Nada mais doce do que nascer, viver, envelhecer e morrer. E não ser jamais assassino. Nunca me esqueço do que aconteceu com um dos meus amigos. Gostou de uma menina e, no final da tarde, os dois passeavam, na praça Saenz Peña, de mãos dadas. Um dia, a menina crispa a mão no braço do bem-amado; diz: — “Olha Fulano”. Fulano era o ex-namorado da garota, um brutamontes, que aprendia judô, caratê etc. etc. E, segundo se dizia, estava esperando, para qualquer momento, o seu primeiro ataque epilético. O ex-namorado barrou-lhe a passagem; abotoa o meu amigo: — “Quando se encontrar co­migo... Cala a boca. Quando se encontrar comigo, atravesse a rua. Ou lhe parto a cara”. O ofendido, branco, não disse uma palavra. E o outro: — “Agora, suma. Ande. Suma”. O rapaz bai­xou a cabeça e correu.
De noite, a moça liga para ele, aos soluços. Quase não po­dia falar. O humilhado, o ofendido, só dizia: — “Calma, meu bem, calma”. Por fim, mais controlada, disse tudo: — “Você vai-me fazer um favor. Vai dar um tiro nesse miserável”. Num espanto aterrado, ele balbuciou: — “Tiro, eu? Meu bem. Eu não sou de dar tiros”. E a outra: — “Quer dizer que você é covar­de?”. Respondeu: — “Não sei se sou covarde. Assassino, não sou”. Ela esganiçou-se no telefone: — “Escuta! Escuta! Na próxima vez, ele vai-te dar na cara. E você vai apanhar calado?”. Disse, manso como um santo: — “É mais forte do que eu. Não posso brigar fisicamente. Apanho, mas não mato. Nada me fará matar!”. Romperam no telefone. E a menina acabou voltando para o ex-namorado.
Eu compreendo tanto os que não matam. Gostaria de ex­plicar. Quando matam alguém, é como se Roberto estivesse mor­rendo outra vez. Foi assim com o primeiro dos Kennedy. Uma bala arrancou seu queixo plástico, crispado, vital. Então senti como se fosse Roberto, novamente Roberto. E, por um momen­to, tive a ilusão de que, dois meses depois, meu pai morreria também, como em 1930. E assim, quando balearam o outro Ken­nedy, Bobby. E onde quer que alguém seja assassinado por al­guém — cria-se entre mim e o que morreu uma relação obsessi­va, implacável.
Há dias, trucidaram, em Pernambuco, o jovem padre An­tônio Henrique Pereira Neto. Até o momento em que bato es­tas notas, não se sabe quem matou e por que matou. Segundo o comunicado da arquidiocese de Olinda e Recife, o padre An­tônio Henrique, além de sofrer uma série de sevícias hedion­das, foi amarrado e enforcado. Em seguida, vararam de balas o cadáver. Começam então as hipóteses desesperadas. Autori­dades policiais do Recife acham que se trata de um crime pas­sional. Ao passo que autoridades eclesiásticas afirmam que foi “crime político”. Mas “passional” ou “político”, o que impor­ta é a hediondez do fato. Dizia aquele personagem dostoievskiano: — “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
Para muitos brasileiros, Deus está morto. E para esses, para os “assassinos de Deus”, tudo é permitido. Que limites, dúvi­das, arrependimentos poderão travar os “cristãos-marxistas”, os “cristãos-sem vida eterna”, os “cristãos-sem sobrenatural”, os “cristãos-sem Cristo”? Falei da “esquerda católica”. Um dia, ela terá de ser julgada. Na confissão de ontem, falei de um dos pronunciamentos mais claros de d. Hélder. Sem nenhum dis­farce, declara: — “Respeito aqueles que, em consciência, sentem-se obrigados a optar pela violência; não a violência fácil dos guer­rilheiros de salão, mas a daqueles que provaram sua sinceridade com o sacrifício de suas vidas”. Não. Aí não está dito tudo. Pro­varam a sinceridade morrendo, por azar, e matando, por que­rer. Antes de morrer, Guevara matou. E, repito, morreu sem querer e matou querendo. Também Camilo Torres. Esse cristão-homicida empunhou o fuzil, não para morrer, mas para matar.
E diz mais o arcebispo de Olinda e Recife: — “Parece-me que as memórias de Camilo Torres e de Che Guevara merecem tanto respeito quanto as do pastor Martin Luther King”. Não, mil vezes não! Luther King não morreu de fuzil, faca ou revól­ver na mão, como Guevara ou Camilo Torres. Não matou, nem quis matar. Não pregou o ódio, a “violência justificada” católi­ca. Morreu de amor e por amor. Os que pregam o ódio não po­dem chorar o jovem sacerdote do Recife.
Todos nós temos um projeto de Brasil. O da esquerda ca­tólica é o Brasil do ódio. O Brasil do sangue, o anti-Brasil, um Brasil sem Deus. Este país não teve jamais um drácula. E, súbi­to, os possessos querem que nos transformemos em 80 milhões de dráculas bebendo o sangue uns dos outros.

[17/6/1968]

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