domingo, 15 de fevereiro de 2009

DA LINHA CHINESA

Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo. Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora cer­ta. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.
Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e cons­tato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quan­do chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o si­nal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de cou­ro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros.
Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou es­perando. E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, des­ceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade inso­lente. A princípio, imaginei: — “Vai morrer”. Se fosse um ve­lho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatal­mente arrastado, esmagado.
Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto. Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua tra­vessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.
Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tem­po, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio. Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.
Hoje, não. Há, por toda a parte, a “jovem revolução”. É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confir­mam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se le­vantam? Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os va­lores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os reali­zou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa. Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.
Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a “jovem revolução” é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimen­sões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a “jo­vem revolução” nada tem de jovem. São precisamente os ve­lhos que a promovem. E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmen­te, a sua arteriosclerose.
Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os “mais velhos” resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a pró­pria onipotência? Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado por­que os veículos também bajulam a “jovem revolução”.
Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de tea­tro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático. Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — “Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler”. Era um recorte de jornal; explica: — “É uma entrevista da Cacilda Becker”. Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — “Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem”. Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.
Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente. Ex­pliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbe­cis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturi­dade. De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos. Viro-me para o rapaz: — “Queres que eu te admire? E te faça manche­tes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud”.
Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia. Fiz um alegre escândalo: — “Não é pos­sível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poe­sia!”. Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — “Escuta cá. Se não te interes­sas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?”. Dis­se, ofegante da vaidade: — “Sou da linha chinesa”.
Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral. Eis a mi­nha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nun­ca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, românti­ca, e não impressa.
A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — “O mundo é dos jovens”. A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada. O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pron­to. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez. Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

[20/6/1968]

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