terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

CONTRA A VIOLÊNCIA

Apanho o jornal e vejo o telegrama: — Hollywood declara guerra à violência. São atores, atrizes, diretores, roteiristas. É uma unanimidade, mais uma unanimidade. Assim somos nós, todos nós. O nosso gesto, o nosso ódio e o nosso grito — já não precisam nascer na solidão. O homem quer ser irresponsá­vel. Na hora do protesto, da ira, todos providenciam uma ur­gente unanimidade. Ninguém está só. Matamos e morremos em grupos, em hordas, em maiorias, em assembléias, em comícios.
No manifesto de Hollywood, o que existe, precisamente, é o pânico da responsabilidade nítida, indivisível, total. Não há um nome, uma cara. Cada qual se esconde debaixo da unani­midade como de uma cama. Todos são contra a violência, a crueldade, o sadismo, o terror. Vejam e pasmem: — daqui, pa­ra o futuro, Hollywood só fará filmes com bons sentimentos.
Não tenho nada a objetar. É uma reação linda, embora tar­dia. Mata-se demais no cinema, morre-se demais, trai-se demais, odeia-se demais. E há, na tela, um erotismo difuso, volatizado, atmosférico. A platéia respira voluptuosidade. E tudo nos é trans­mitido em forma de perversão. Portanto, parece muito cabível e sábia a correção ética que se propõe. Até aqui, Hollywood vi­veu, inversamente, dos maus sentimentos. Com que técnica e com que arte, com que fotografia e com que direção, soube ela tecer as mais lindas fantasias sobre as nossas abjeções!
Para não ir mais longe, aí está Belle de jour, Quem o veja percebe esta verdade absoluta: — o “grande diretor” não pode ter essa mediocridade de virtudes e defeitos que se exige de um marido burguês. Para pôr de pé um personagem sádico, cruel, voluptuoso, ele terá de ser de um sadismo, ou de uma volup­tuosidade, ou de uma crueldade profunda. E assim o intérprete, e assim o fotógrafo, e assim o autor dos diálogos. Um filme como Belle de jour exige toda uma equipe de possessos. Aque­la esposa alucinatória é o próprio Buñuel. Sim, ela é ele.
Diria eu que a humana sordidez tem sido o ganha-pão dos que, hoje, tentam uma árdua, frenética e antieconômica purifi­cação. Se não existisse no homem o lado podre, se não existis­se no fundo de cada qual a lama inconfessa e encantada, tam­bém não existiria a indústria cinematográfica. Ah, o cinema nos compromete desde meninos! Bem me lembro dos mitos que Hollywood teceu para as crianças. Um deles foi Tom Mix. Ou­tro, Rolleaux; outro ainda, William S. Hart. Pois Tom Mix subia no cavalo e dava tiros em todas as direções. Matava, e como matava! Era assassino por todas as crianças da platéia.
E, de repente, a unanimidade resolve acabar com o terror. Uma das primeiras vítimas de tal providência é um velho co­nhecido nosso: — o vampiro. Aí está uma figura fundamental do cinema. Tenho um tio que passa anos sem ver um filme. Diz ele que o cinema, como o jornal, mente muito. Mas não perde um filme de vampiro. Certa vez, soube que estava levando um em Vigário Geral. Atravessou a cidade e foi lá. Por que será que esse tio, e outros tios, e outras tias — têm um tal delírio pelos vampiros? Deve ser uma fascinação mundial. A indústria cine­matográfica não seria o que é, o império que é, se não tivesse, no seu passado, presente e futuro, as bilheterias do vampiro.
Abro um breve parêntese. Ainda ontem estive com o Palhares, o canalha. Sim, “o que não respeita nem as cunhadas”. E o Palhares me dizia, com um agudo sentimento de frustração: — “Nunca houve um vampiro no Brasil”. O canalha chama is­so de “lapso”, que se deve atribuir ao subdesenvolvimento. E, de fato, o sujeito aqui nasce com os pendores mais imprevisí­veis. Conheci um que era um “barbeiro de necrotério” nato. Teve as melhores ofertas. Certa vez, um vizinho ofereceu-lhe sociedade numa barbearia. Ponto ótimo, aluguel muito em con­ta. Repeliu a hipótese com a mais intransigente repugnância. Só queria escanhoar cadáver. Nada o impediria de exercer esta função e de cumprir este destino. Pois bem. O Brasil teve bastante imaginação para dar um barbeiro de necrotério. E nunca pôs no mundo um drácula. Fecho o parêntese.
Voltemos a Hollywood. O que se propõe, no manifesto ci­tado, é da mais pura e deslavada alienação. Nada mais idiota do que fazer filmes sem violência para uma platéia de violentos. Todas as violências nos fascinam. Sempre foi assim, e agora mais do que violência. O cinema trabalha para o mundo que matou Bob Kennedy, chorou Bob Kennedy e, 48 horas depois, esque­ceu Bob Kennedy. O esquecimento veio antes de que murchas­sem as flores do seu caixão.
O sujeito entra num cinema e leva a sua tensão exterminadora. Ele odeia e quer ver seu ódio na tela. De vez em quando, a Manchete publica um cadáver do Vietnã. Não se sabe se o mor­to é de lá ou de cá. Pode ser um herói e pode ser um bandido. O cadáver morreu odiando e continua odiando. Lá está seu gesto retorcido de ódio. E assim a fúria do homem continua para além da vida e para além da morte.
E que pobre utopia um cinema sem violência, sadismo, ter­ror e medo! Seria a morte da própria indústria cinematográfica. Hollywood desabaria como uma cúpula de palitos. Uma destas noites, passei num sarau de grã-finos. E uma bela senhora dizia, com um maravilhoso impudor: — “Eu era a própria belle de jour. Fiz psicanálise e não adiantou. Continuei belle de jour do mesmo jeito. Até que fui ver o filme e houve o milagre. A he­roína fez por mim, sonhou comigo. Saí do cinema purificada. Era uma menina tão pura, tão sem sexo. Nem alma tinha”.
Assim, o ser humano vai para o cinema lavar as suas abjeções. Já estou acabando e queria apenas acrescentar: — Holly­wood devia fazer precisamente o contrário do que exige a sua tola unanimidade. Mais do que nunca, deve fabricar os filmes hediondos. O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face da nossa crueldade. Ou o cine­ma nos ofende e nos humilha ou, então, deve morrer. E, sem­pre que o cinema apresenta a sordidez em dimensão gigantes­ca, cada qual sente o eterno, o sagrado, que existem no mais vil dos seres.
[24/6/1968

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