segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

OS ABNEGADOS

Há uma página de Os Maias que não consigo esquecer. Imaginem um ministro de Educação que não tinha cara, só tinha testa. Nem um mísero e escasso fio de cabelo. Tamanha testa foi o seu destino e sua glória. Ele não precisava ciciar uma pala­vra, ou desdenhar um gesto, ou piscar um olho. A testa bastava e repito: — a testa era a evidência mesma do gênio.
Uma noite, está o nosso ministro numa recepção. Cercado de damas e cavalheiros por todos os lados. E, súbito, alguém fala na Inglaterra. S. exª achou bonito o nome, o som. Inglater­ra. E vira-se, então, para o Ega, que estava a dois passos. Pergunta-lhe: — “Sabe se, na Inglaterra, há folhetinistas de pul­so, como aqui? Talentos como os nossos?”. Primeiro, o Ega tem uma vertigem diante da testa inaudita. Em seguida, informa: — “Lá não há literatura”. Diz então o ministro: — “Logo vi. Povo prático, essencialmente prático”.
Eis o que eu queria dizer: — sou um pouco essa admirável testa de Os Maias. Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tan­to tempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich, dos Dumas pai, dos Ponson du Terrail. Outro dia, vou a uma festinha em casa de um amigo. E, de repente, vem a do­na de casa, com um pratinho. Pergunta: — “Aceita rocambole?”. Esse nome arremessou-me no passado profundo. “Rocambole” era o nome de um herói de Ponson du Terrail e título também do próprio folhetim. Disse, radiante: — “Pois não, pois não”. E os dois ficaram justapostos na minha memória: — o per­sonagem e o doce, o folhetim e o prato.
Essa mesma experiência proustiana tenho eu quando me chega uma carta anônima. E aí está uma marca de leituras pas­mas. Como se sabe, a carta anônima é um dos artifícios mais felizes do velho folhetim. O marido a recebia (e o marido era sempre sórdido e obeso). Lá vinha escrito: — “Considere-se mi­seravelmente enganado”. E se disparava a intriga romanesca. Na altura dos meus oito, nove, dez anos, daria tudo para rece­ber uma torpe carta anônima.
Fiz a introdução acima para contar o que me sucedeu on­tem. Vou ler a minha correspondência e já no primeiro envelo­pe tenho o impacto. É que a carta não trazia assinatura. Ah, o homem diz, na carta anônima, o que não ousaria dizer ao pa­dre, ao psicanalista e ao médium, depois de morto. O menino do folhetim veio à tona. Comecei a ler.
Começava assim: — “Nelson, você é um traidor”. Minha curiosidade assumiu proporções inéditas. Traidor, eu? Da pátria, talvez. Entre parênteses, assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamen­te, rua Traidores da Pátria. Em seguida, a carta anônima infor­ma que sou traidor da própria classe. Qual delas? Tenho duas: — por um lado, faço jornalismo; por outro lado, faço teatro. Segundo a carta, era traidor da classe teatral. Quando cheguei à última linha, voltei à primeira e reli tudo. Só então fui-me olhar no espelho. E vi, na minha cara, o esgar hediondo da traição.
Fica de pé a pergunta: — e por que traidor? Vejamos os fa­tos. O Estado de S. Paulo fez um editorial, ou dois editoriais, que desagradaram a classe. E que faz a classe? Reúne-se e, por unanimidade, resolve devolver os Sacis que o velho órgão dis­tribui entre os melhores de cada ano, no cinema e no teatro. E, não satisfeita, a assembléia decidiu, e por outra unanimida­de, uma passeata-monstro.
Mas, vejamos. A classe ia marchar contra quem? Aqui co­meça o doloroso, o comprometedor, o humilhante: — contra um jornal. Se os meus colegas saíssem pelas ruas paulistas de­capitando marias antonietas e derrubando bastilhas, eu estaria admirando a ferocidade teatral. Mas a nossa vítima é uma reda­ção, vejam vocês, uma redação. Por outro lado, tenho algumas dúvidas perturbadoras.
O Saci é uma pequena estatueta. E se fosse um prêmio em dinheiro? Repito: — se o Saci fosse um cheque de 5 milhões de cruzeiros? E nem precisa tanto. Imaginemos um cheque mais modesto de 1 milhão ou menos do que isso: — de 500 mil cru­zeiros antigos. Pergunto se os manifestantes devolveriam o di­nheiro vivo. Duvido, isto é, afirmo que ninguém devolveria um centavo. Portanto, vamos desconfiar de um desprendimento que não desembolsa um tostão.
Nem considero a unanimidade um argumento decente. Quanto ao meu caso pessoal, estou farto de repudiar unanimidades. Além disso, como eu sou um premiado, e não vou devolver Saci nenhum, não existe tal unanimidade. Mas, vamos admitir que todos, absolutamente todos, estejam contra O Estado de S. Pau­lo. Eu estaria a favor. Não me solidarizo com os erros, os equí­vocos, de minha classe. Diz a carta anônima: — “Uma classe não erra. Uma classe sempre tem razão”.
Nada mais falso. Homens; classes, povos são suscetíveis dos mais sinistros enganos ou das mais hediondas torpezas. O moti­vo e a origem de tudo foram dois editoriais. Que fossem duzen­tos. Qualquer jornal tem o direito de escrever como quiser e o que quiser, sem dar satisfações a ninguém. Falo por experiência própria. Ao longo de vinte anos, fui o único autor obsceno do Brasil. E, durante esse período, fui chamado de “tarado” em man­chete. Os críticos me xingavam de “cérebro doentio”, de “caso de polícia”, de “louco varrido”. O dr. Alceu Amoroso Lima dis­se horrores de mim. Em momento nenhum, neguei-lhe o direito de me dizer tais horrores. Sempre quis a imprensa livre.
Diz a carta que a classe quer a liberdade. Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade. Dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Ber­ram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura. A passeata que se fez é, precisamente, contra a liberdade de imprensa. Queremos um teatro livre. E, ao mesmo tempo, pretendemos exercer uma censura, vejam vocês. Os cen­sores da imprensa somos nós, atores, atrizes, autores.
Em nome da liberdade, agredimos a liberdade. Ainda bem que o nosso heroísmo começou e acabou na devolução dos Sa­cis. E assim o pessoal de teatro desceu do palco e foi às ruas, representar de libertário.

[22/6/1968]

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