quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O IRMÃO ADQUIRIDO

Tempos atrás, o Walter Clark telefonou-me. Foi sumário: — “Preciso de ti”. Ainda perguntei: — “Qual é o drama?”. Fez suspense, fez mistério: — “Só pessoalmente”. E já se despedia: — “Te espero. Vem já”. Meia hora depois, entro no seu gabi­nete, ali, na tv Globo.
Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, en­tão, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo. Wal­ter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Cer­ta vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um mo­mento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era “melhor que Portinari”. Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — “Abominável Vol­pi! Horrendo Volpi!”. Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.
E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc. Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adian­te, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — “Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?”. Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.
Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota hún­garo não transigiu: — “Setenta”. E daí não saía. Walter subiu Para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado. Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — “Ou setenta ou nada”. Então, batido, o Walter en­cheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.
Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chi­cago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bo­des, arvoredos, corações flechados. Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da tv Globo, como os funcioná­rios da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.
Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — “Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio”. Seria um programa sem limite de tem­po. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Bra­sil e do mundo. Prometi ao Walter: — “Vou pensar”.
Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Ima­ginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos cana­lhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, “canalha” era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.
Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez es­panto: “Por que falsos canalhas?”. Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de “cana­lhas aparentes”. Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia. Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochicha­vam: — “Pulha da pior espécie!”. Mas ninguém sabia de um ges­to seu menos correto, de uma ação menos digna, de um senti­mento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda. Estava aí o mistério de sua repu­tação: — a mulher bonita.
E, de fato, não custa chamar de “escroque”, de “gatuno”, de “crápula”, aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os “falsos canalhas” existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação. Todos pen­sam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.
Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu ir­mão Mario Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exata­mente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc. Eu já o conhecia de nome e de vista. Vi­ra-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, jun­to ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apre­sentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.
Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico. Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo ab­jeto e total. E não entendia por que Mario se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — “O Cony! O Cony!”. Em su­ma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na pri­meira pausa, aproveitei para me despedir. Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade. Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.
E quantas vezes, depois disso, Mario me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mario ia ser, e para sempre, amigo do canalha. Até que, uma madru­gada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Ma­rio acabara de morrer. Corri para vê-lo. Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia se­guinte, uma chopada com o Hélio Pellegrino. Debrucei-me so­bre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.
Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mario, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — “Como foi isso? Como foi isso?”. O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mario. Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia. O irreal, o ab­surdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afun­dou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte. E, na­quele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre. Era, sim, o falso canalha.

[25/6/1968]

Um comentário:

Anônimo disse...

Também, adorei as suas várias faces, garota multifacetada!
Tenho um outro espaço, passa lá http://millamanara.blogspot.com/