quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A MESSALINA GAGA

Tenho um amigo curiosíssimo. Dá-se comigo há mais de trinta anos. Mas não há, digamos assim, continuidade em nos­sos encontros. De vez em quando, desaparece; e, de vez em quando, volta (é cíclico como a minha úlcera). Quando some, sua ausência tem a densidade da morte. E, quando reaparece, está sempre comigo, grudado a mim como um gêmeo.
Mas eu disse “amigo curiosíssimo”. Pelo seguinte: — nun­ca sei se ele se chama Meireles ou Marcondes. Pode ser Mar­condes e pode ser Meireles. Tal singularidade empresta à nossa relação um tom meio alucinatório. Eis o que eu queria dizer: — não o via há mais de seis meses. E, ontem, de repente, dou com o Meireles na esquina, em cima do meio-fio, esperando que o sinal abrisse para os pedestres. Quando nos vimos, foi uma festa recíproca e escandalosa.
O Meireles caiu nos meus braços e eu nos dele. Dizia ele, de olho rútilo: — “Há quanto tempo!”. Em seguida, gabou-me a aparência. Disse e repetiu: — “Você está ótimo, ótimo”. E eu: — “Você também”. Afirmei que a sua aparência era um poe­ma. Depois dos mútuos rapapés, o Marcondes (ou será Meire­les?) limpa um pigarro e começa: — “Preciso de um favor teu”. Digo-lhe: — “Dois”. Põe a mão no meu ombro: — “É o seguinte: — faz outra entrevista imaginária com o d. Hélder, faz”.
Era esse o favor. No meu espanto, exclamo: — “Outra vez?”. Tentei explicar-lhe que um colunista diário vive da va­riedade de assuntos e de figuras. O leitor não gosta de fixações. E repeti: — “O segredo é a variedade”. O Marcondes não se conforma. Retruca com um argumento engenhoso: — “D. Hél­der é a própria variedade, é a antimonotonia”. Terminou com um novo apelo: — “Te peço, encarecidamente, uma nova entrevista imaginária com o d. Hélder”. Digo, por fim: — “Está bem. Farei”. O Marcondes se despediu num arroubo: — “És uma mãe!”.
Isso foi ontem. Hoje, estou na máquina, escrevendo mais uma imaginária. Como se sabe, nada mais falso do que a en­trevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da pri­meira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade.
Tais entrevistas imaginárias só ocorrem à meia-noite em ponto. Eis a paisagem obrigatória: — um terreno baldio que te­nha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamente quando o sino da matriz dava as doze badaladas. Alhures, uma coruja pia. D. Hélder pergunta: — “E o pessoal? Não vem ninguém?”.
Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é o pudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e nin­guém as ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: — “Em que jornal trabalha a cabra?”. Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos, menos o de ser jornalista. Esclareço ainda: — “A úni­ca função da cabra é paisagística”. A frustração do sacerdote foi total. Fechou a questão: — “Só falo para jornal, rádio, televi­são”. Pergunto: — “É sua última palavra?”. Era.
E, já que não havia outro, remédio, tratei de convocar uma imprensa também imaginária para o local. Instantaneamente, apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, o Washington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos, correspondentes estrangeiros, a bbc de Londres etc. etc. Essa pla­téia espectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martins surgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Claudio Mello e Souza daria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: — “E a Life não mandou ninguém?”. Tive que providenciar um enviado imaginário da Life.
Todos presentes, comecei: — “D. Hélder, a diretora de um colégio religioso de São Paulo disse o seguinte: — que ser prostituta é uma profissão como outra qualquer. O senhor con­corda?”. D. Hélder não respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como se rezasse. Os faunos e as ninfas, que cos­tumam infestar os terrenos baldios, vieram espiar. Suspense ater­rador. E, súbito, o arcebispo pula: — “Não! Não!”.
Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. To­dos sentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos, vai falando: — “Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissão como outra qualquer. Absolutamente. É uma profis­são que exige prendas raras. Raras”.
Instalou-se, ali, no mato, o caos profundo. A imprensa imaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Os taquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mais didático, d. Hélder está falando: — “Qualquer uma pode ser datilógrafa, não é exato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativos especiais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bru­xa de disco infantil não pode fazer a prostituição. Tanto a gaga como o bucho morreriam de fome. Portanto, é injusto falar em ‘uma profissão como outra qualquer’. Ou estou enganado?”. O orador é aplaudido como um tenor no dó de peito.
O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: — “É verdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?”. D. Hélder não ouviu direito. O outro repete: — “É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja?”. A resposta foi de uma rara felicidade: — “Meu amigo, quem tem passado é a adúl­tera recuperada”. Neste momento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com um livro: — “O senhor quer escre­ver isso no meu álbum?”. D. Hélder arranca da batina uma ca­neta e põe lá: — “Quem tem passado é a adúltera recuperada”. Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta: — “Gostou?”. E a moça: — “Lindinho!”.
Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: — “O que é que o senhor acha do amor?”. D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: — “Oh, oh!”. E responde com outra pergunta: — “Que idade você tem?”. Resposta: — “De­zenove”. D. Hélder ralhou, alegremente: — “E como é que vo­cê, aos dezenove anos, fala em amor? O que é amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo”. Estaca ao som da própria frase. Diz: — “Acho que fui feliz”. E repete: — “O amor é a doença do sexo”. Estimulado pela frase, foi adian­te: — “O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor!”.
Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária. O Justino Martins tornou-se diáfano, o Claudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapa­tos, tudo se volatilizou. E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: — “O amor é a doença do sexo”.

[15/6/1968]

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