sábado, 21 de fevereiro de 2009

O BOM PADRE

Como qualquer autor, vivo ou morto, tenho três ou qua­tro personagens obrigatórios. E um deles é o havaiano de filme. Hoje, não há mais louro no Brasil. Todo mundo é moreno. E quando falta uma praia, há sempre um sol à mão. Vem o sol e lambe e bronzeia e lustra qualquer um. Somos 80 milhões de havaianos e de havaianas. Dirão que há garotas de cabelo doura­dos. Não importa. No Brasil atual, mesmo as louras são morenas.
Que abismo entre as gerações românticas e os novos tem­pos! Na época do Dumas filho, o certo, o correto e, mesmo, o obrigatório era a palidez diáfana e intensa. Nos velhos folhe­tins, ao menor pretexto, os personagens cobriam-se de uma “pa­lidez mortal”. Aqui mesmo, o nosso Bilac ouvia estrelas “páli­do de espanto”. (Hoje, o mesmo Bilac ouviria as mesmas estrelas “moreno de espanto”.) E nem a morte mudava a cor de nin­guém. Só o cadáver preto era azul. Ao passo que o branco, vivo ou morto, tinha a mesmíssima lividez.
O que é mesmo que eu estava dizendo? Já sei. Dizia eu que somos todos havaianos. Todos, menos um. E, de fato, há um brasileiro que se constitui em uma exceção escandalosa. O úni­co não moreno. Eis o seu nome: — Nelsinho Motta. Daqui a oitenta anos, sua alma subirá aos céus, num carro azul de gló­rias, como Elias e como o pai de Augusto dos Anjos.
E, lá, os anjos e os santos perguntarão ao Nelsinho: — “Você nunca foi à praia? E nunca tomou banho de mar?”. Alçando a fronte, dirá o colega e patrício: — “Nunca tomei banho de sol, nunca tomei banho de mar”. E assim é e assim será, eternamente. Nelsinho Motta é a única palidez que se conhece na vida real. Eu próprio já o chamei, certa vez, de Alfredo, da Traviata. Mu­dei de opinião. É muito mais Werther do que Alfredo. E tão Werther que, ao vê-lo, tenho vontade de perguntar-lhe: — “Quan­do é o suicídio?”.
Mas disse eu que o colega era o caso único de palidez que se conhece no Brasil de nossos dias. E, novamente, tenho que fazer uma exceção. Conheci, três ou quatro noites atrás, uma outra palidez, e não menos diáfana. Imaginem vocês que fui a um sarau de grã-finos na Gávea. Sim, Gávea.
Entre parênteses, direi que qualquer sarau desse tipo lem­bra muito um pesadelo humorístico. Se não me entendem, ex­plico. Humorístico porque uma reunião grã-fina se assemelha a todas as reuniões grã-finas passadas, presentes e futuras. En­tro lá e penso: — “Vai acontecer tudo outra vez”. E, de fato, são os mesmos decotes, as mesmas sandálias, e os mesmos ca­belos, e perfumes, e frases, e jóias etc. etc. Fecho o parêntese.
Assim que me viu, a dona da casa veio para mim, radiante. Estendeu não uma, mas as duas mãos. Perguntou: — “Como vai esse reacionário?”. Numa época em que ninguém se rubori­za, eu fiquei, e o confesso, vermelhíssimo. Digo: — “Vai-se vi­vendo”. E já a dona da casa (uma havaiana) me puxava: — “Vem cá, vem cá. Alguém quer te conhecer”. Demos alguns passos e encontramos a pessoa. Era uma outra grã-fina e, como a anfi­triã, uma falsa bonita. Diga-se de passagem que todas as presen­tes eram falsamente lindas.
A dona da casa me apresenta: — “Aqui, o maior reacioná­rio do Brasil”. Digo: — “Não mereço tanto”. E, então, ela se volta para a amiga: — “Aqui, Fulana”. Pausa teatral e completa: — “A amante espiritual de Guevara”. Sou dos que se espantam de vez em quando. Achei aquilo meio forte (bobagem minha). Mas a amiga fixa em mim o seu olhar límpido e triste. Queria dizer simplesmente que era “amante espiritual” de Guevara: — “Com muita honra”. Deliciada, a anfitriã insistia: — “Não é brin­cadeira. Sério, sério”. E disse mais: — “Com o consentimento do marido. Quer ver? Um momentinho”.
Afastou-se um minuto. A outra não tirava os olhos de mim. Houve um momento em que, para dar passagem ao garçom, che­gou tanto o rosto que senti o frêmito de suas narinas. Voltava a dona da casa com o marido da amiga. (O marido era só testa. Não tinha mais nada. Só testa.) A anfitriã fala: — “Diz pra ele. Sua mulher é o quê?”. A testa respondeu, em tom monotonamente informati­vo: — “A amante espiritual do Guevara”. Silêncio. Eu não sei se devo rir, sorrir ou ficar sério. Mas ninguém, ali, achava graça. Era um fa­to ou, para ser mais explícito, um adultério como outro qualquer.
E, depois, saiu a dona da casa com o marido alheio. Foi aí que ela me disse: — “O senhor, que é jornalista, sabe de uma sessão que...”. Interrompe-se; e continua: — “Sou católica, mas... Sabe de uma sessão espírita, onde eu possa comunicar-me com Guevara?”. Fiz um suspense. Começo: — “Bem. De momento, não me lembro de nenhuma. Só pensando”. E cada vez me convencia mais de que era uma falsa bonita. Finalmen­te, sem uma palavra, ela me deixou ali, e ia, ereta, a fronte alta, os olhos sem luz, misteriosa como uma sonâmbula.
Todavia, a noite não esgotara ainda o seu repertório de singularidades. Em seguida, vi a anfitriã arremessar-se (e quase o garçom a atropela). Dizia: — “Padre Fulano! Padre Fulano!”. Es­piei a figura que acabava de chegar. Falei no Nelsinho Motta. E o padre era outro pálido e, quero mesmo crer, mais pálido do que o Nelsinho. Nunca pisara numa praia. Talvez a palidez fosse a sua única concessão ao misticismo. Primeiro, a dona da casa; e, em seguida, outras o envolveram, quase o raptaram. Esquecia-me de dizer: — não usava batina. Colarinho, gravata, terno, como qualquer um. “Padre moderno”, notou alguém.
Resistia às havaianas que o cercavam: — “Estou de passagem. Deixei o automóvel na porta. Vim aqui”. Uma voz feminina pe­dia pelo amor de Deus: — “Fica só quinze minutos”. Ele acabou perdendo a paciência: — “Um momento, um momento!’’. Como era confessor de várias, inclusive da “amante espiritual” de Gue­vara, tinha autoridade e se dispôs a exercê-la. Berrou: — “Silên­cio!”. E, assim, emudeceu todos os cochichos. Sentiu que havia acústica para sua mensagem. Disse forte, disse alto: —’ “Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!”. Suspense. Repetiu: — “Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!”. Pessoas de ou­tras salas vinham espiar, espavoridas. Mas o padre já se despedia, com um aceno geral: — “Até logo, até logo. O táxi está esperan­do. Tabela 2!”. Como era tabela 2, deixaram-no partir.
Só depois eu soube que, antes dele, um outro sacerdote fora a um programa de estudantes na televisão. Começara exatamente assim: — “Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igre­ja”. Mas não são os únicos. Outros e outros estão repetindo, com patética e rutilante humildade: — “Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja”. Pergunto se é uma palavra de ordem. E a sensação dos fiéis é de que se trata de um vil passado, de vin­te séculos de lepra espiritual.
[2/7/1968]

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