sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O NEGRO AZUL

Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma miste­riosa angústia. Quero que me entendam. Disse “angústia”, mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível. Paro de ba­ter à máquina e puxo um cigarro. Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezi­nho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. “Falta alguma coisa”, repetia para mim mesmo.
Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e não posso. De repente, há um clarão interior: — as polainas! Eu sen­tia, exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei, mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainas desapareceram da cidade, do país. São antigas, espec­trais, como o guarda-chuva de Paulo de Frontin. Será que al­guém as usa? Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergun­ta que me faço: — “Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?”.
Um deles foi o dr. Jacarandá. Outro: o cidadão Pingô. Mas o último, exatamente o último que vi de polainas foi um preto, oficial de Justiça. Sempre digo que nunca se viu, neste país, um negro de casaca. É verdade. Os nossos patrícios de cor já usa­ram tudo e, se quiserem, até folha de parreira, menos casaca. Estou para fazer uma tragédia racial, cujo título é o seguinte: — O negro azul. Morava o “negro azul” num pardieiro, em Del Castilho. De manhã, entrava ele na fila do banheiro coletivo. Até que, um dia, às dez horas da manhã, todos o viram sair de casaca. Casaca e cartola. Não tomou um táxi, um ônibus, um bonde ou taioba. Levou a casaca a passear pelas ruas e a pé. O desfile começou às dez da manhã e só parou à meia-noite. Exa­tamente à meia-noite, atirou-se debaixo de um ônibus. Ninguém soube jamais que a casaca era o seu protesto contra o Brasil.
Volto ao oficial de Justiça. Fisicamente enorme, era um ne­gro plástico, lustroso, ornamental. E tinha uma voz de Paul Robeson, as ventas de Paul Robeson, os beiços de Paul Robeson. Vou eu passando pela rua Senador Furtado (ou seria Senador Pompeu). E, súbito, vejo adiante um ajuntamento. O brasileiro se incorpora a qualquer grupo de mais de cinco pessoas. De mais a mais, temos a fascinação do escândalo. E eu, da esquina, já ouvia o berreiro tremendo, gritos de mulher etc. etc.
Tantos anos depois, ainda vejo o Paul Robeson em todo o esplendor de sua figura e de suas polainas. Vocalmente, tinha a potência de um barítono, ou baixo cantante, desses que exi­gem a acústica de uma catedral, a cúpula de uma catedral. En­chia a rua, o bairro, com o seu clamor: — “Eu tenho razão! Eu tenho razão!”. Lá estavam elas, as polainas. O homem andava de um lado para outro. Bem vi que as polainas o desagravavam da frustração da casaca. Soltava a voz: — “Eu tenho razão! Eu tenho razão!”.
Em três ou quatro minutos, vim a conhecer a história to­da. Aquilo era um despejo. O crioulão de polainas estava ali co­mo oficial de Justiça. Outros crioulões, e um branco sarará, iam e vinham, trazendo os móveis e empilhando tudo na calçada. Quanto à mulher dos gritos (e continuava gritando), era viúva e mãe de cinco ou seis filhos. Há uns três meses o marido mor­rera tuberculoso e deixara, para a mulher, além das dívidas, a própria doença.
Cabe então a pergunta: — e de onde vinha a magnífica, a estupenda, a ululante razão do oficial? Ei-la: — a viúva não pa­gava o aluguel há um ano. E, portanto, ele podia abrir sua razão de par em par, como uma manchete. Outrora, o brasileiro rea­gia muito contra a violência, mesmo justa, mesmo legal. Sem­pre um ou outro gritava: — “Não pode, não pode!”. Mas nin­guém insinuou um vago pio em favor da viúva e dos filhos. De vez em quando vinha a tosse afogar a sua fúria. Ela se torcia e destorcia em náuseas medonhas. Houve um momento em que, depois do acesso, cuspiu na palma da própria mão e espiou o sangue. A vista do vermelho distraiu-a do despejo. Arquejou, sem desespero, apenas informativa: — “O falecido me chama”. Não chorou mais, ou por outra: — continuou chorando, mas sem gritar. E as polainas eram mais insolentes do que esporas.
Eis o que eu queria dizer: — vem daí, desse pequeno e ilustrativo episódio, o meu horror às pessoas que têm razão e a proclamam com o impudor da manchete. Dirá o leitor que qualquer um pode ter razão. Nem todos, nem todos. Eu diria mesmo que só algumas almas seletíssimas, alguns espíritos de rara delicadeza podem tê-la. Lembro-me de outro episódio também perfeitamen­te cabível. Foi uma briga de mulheres. Uma senhora insultou ou­tra. Por que, não me lembro. E o marido da ofendida foi tomar satisfações. A culpada estava esperando criança. Mas o Fulano ti­nha razão; e porque a tinha derrubou-a a bofetões e mais: — pisou-lhe a barriga, chutou-lhe a gravidez. Correto. Tinha razão.
Nas almas menos nobres, a razão pode subir à cabeça em forma de vil embriaguês. E os piores sentimentos, e as cruelda­des mais secretas e inconfessas, e todos os demônios do orgu­lho são liberados. Tudo que sei da vida ensina que a razão po­de perder a nossa alma e repito: — pode destruí-la.
Fiz a volta imensa para chegar à juventude. Vocês me entendem. Falo dessa figura impessoal, sem cara, sem nome, que é “o jovem”. Eis o seu drama: — mesmo sem razão, ele a tem. É uma razão que não lhe custa um esforço, um mérito, um sa­crifício, uma conquista. Tem razão porque é jovem. Não sei se vocês leram um recente artigo do dr. Alceu. Vale a pena.
(Claro que não estou falando de razão em cada caso con­creto e específico. Refiro o problema vital que se está criando com uma desfaçatez inédita.) Todo o artigo do dr. Alceu é mui­to curioso. Mas em dado momento descobre o notável pensa­dor a “razão da idade”. É fantástico.
A razão da idade muda todas as relações e todos os valo­res. Nem importa o que faça “o jovem”. Incendeia a França. Tem dezessete, dezoito, 22 anos. E basta. Arranca os paralele­pípedos e vira os carros. Pode fazê-lo porque tem no bolso a triunfal certidão de idade. Se nasceu no ano X, tudo lhe é per­mitido. Estão aí o jornal, o rádio, a tv para justificá-lo, para absolvê-lo. Há uma “Moral da Idade”, assim como há uma “Igreja da Idade”. Conheço sacerdotes que só confessam “o jovem”. Todos põem na mão do jovem, como uma bomba, a razão absoluta. O mundo deixou de ser dos “mais velhos”. Mas pergunto: — que fará “o jovem” com sua onipotência? A razão da idade pode destruir o mundo.
[1/7/1968]

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