quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O BRASIL NAZI-STALINISTA

Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma ma­nhã, o mundo vê, em todas as primeiras páginas, a cínica, a des­lavada fotografia: — Stalin apertando a mão de Ribbentropp. Digo sempre que o riso pode comprometer ao infinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não se arriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como uma máscara. Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeção estarreceu o mundo.
Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e o clichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, o Grande Medo. Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão. Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foi es­tuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certo tempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todos os idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações. Diria também que os pró­prios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-se indigna.
Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana. Escrevi que a fotografia matou 100 milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horror numérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eu já trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação. Eis o que me ocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se o mundo o aceita, tudo é per­mitido. Durante dias e até meses, fui devorado por uma obses­são. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer sua vida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meu sentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.
E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteli­gente, uma aliança tão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que se entender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin.
Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da es­querda e da direita! Dirá alguém que as intenções são desseme­lhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalin passaram. Ne­nhuma ilusão mais idiota. Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada de pequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. No tempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais vá­lido seria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo.
O pequenino Hitler, ou o pequenino Stalin, tem um ínti­mo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um ou por outro. Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, o radical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista. O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte, cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasil do ódio, ou, melhor dizendo, o anti-Brasil. Direi mesmo que o bra­sileiro está em processo de desumanização. Imaginem cada um de nós transformado, de repente, na antipessoa. Conheço vá­rios que perderam qualquer semelhança com o ser humano.
Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usan­do uma ênfase, um tom, uma veemência não comuns nesta co­luna. Mas explico. O caso é que, ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: — “Imagine, Nelson, imagine!”. Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que é um dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — “Usaram o teu nome! Teu nome!”. Excelente Kleber! Fa­lava como se meu nome fosse um patrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada da Guerra do Para­guai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.
Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jo­vem, prospectos insultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam e ofendem os artistas. E lá es­tá impresso o trecho de um artigo meu sobre d. Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar a canalhice.
Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeito dos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha. Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação de um escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte, anuncia para o seu público: — “Meus senhores e minhas senho­ras, saibam que eu não sou exatamente um canalha”. Entendo, ao mesmo tempo, o empenho do Kleber. Sua dispnéia, ao tele­fone, tinha algo de comovente. Não resisto a um amigo patético.
Bem. Vamos lá. Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, me solidarizasse com a violência. Para mim, a li­berdade está acima do pão (e, por isso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestial dos rea­cionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e a favor da violên­cia. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo as conveniências de momento. Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padre Comblin, que a guerrilha “não adianta”. Não se trata de uma objeção moral, religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só. A dedução é ób­via: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aí chu­pando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hél­der, do padre Comblin e do dr. Alceu.
Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padre de passeata é, hoje, uma ordem tão defini­da, tão caracterizada como a dos beneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviço do ódio. Nun­ca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qual­quer terrorismo da esquerda ou da direita. Agora mesmo cometeu-se um crime contra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Roda viva. Despiram as atri­zes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez. Foi arrastada, pisada, chutada. Começou um Brasil nazi-stalinista.
[24/7/1968]

Um comentário:

Julio Cesar Corrêa disse...

Um ano depois, o Nelson vivia um drama pessoal que ele nunca havia levado aos palcos: ele, que tanto apoiava o governo militar, agora, podia ter um filho preso, torturado e morto pelos mesmos militares que ele tanto apoiara.Não consigo imaginar angústia maior. Aliás, consigo, sim. O Nelson chegou a pedir aos militares para que poupassem o Nelsinho e o deixassem sair do país, caso fosse preso. Os militares concordaram. Mas, ao ser preso, em 1972, Nelsinho recusou tratamento diferenciado e quis ser tratado como os demais presos políticos, assim como se recusou a entregar seus outros companheiros de luta armada.
Acho que não existe dor maior para um pai do que ficar em casa, sabendo que o seu filho está comendo o pão que o demo amassou nas mãos daqueles que ele próprio havia apoiado um dia.
A vida de Nelson deveria virar filme.
bj e ot findi