quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

VELHO MITO

Imaginem vocês a Irlanda de 1919 ou 20. Havia lá, numa cidadezinha obscura, um prefeito igualmente obscuro. Não se notava entre ele e os demais nenhuma forte e crespa dessemelhança. Absolutamente. Não era pior nem melhor do que mi­lhões de irlandeses, vivos ou mortos. E tinha essa mediocridade de virtudes e defeitos que exigimos do bom marido e do exem­plar funcionário.
Até que, um dia, esse burocrata apagado resolve fazer um protesto contra a Inglaterra. Hoje, todo mundo protesta. Há su­jeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. Naquele tempo, não. Depois de uma guerra, o mundo estava exausto do próprio ódio. Havia um tédio da violência e da paixão. Mas o homem resolveu desafiar todo o império inglês.
Anunciou a greve de fome e a começou. Claro que, em nos­so tempo, as técnicas de comunicação têm uma eficácia e uma instantaneidade prodigiosas. Faz-se um gênio ou idiota, um santo ou herói em quinze minutos de fulminante promoção. Em 1920 ou 21, porém, uma notícia ainda levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina.
Assim mesmo, o mundo soube, já no dia seguinte, que al­guém estava morrendo pela liberdade. (Não existe, hoje, pala­vra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que “liberdade”. Como a corromperam em todos os idiomas!) Sim, o martírio do vago funcionário irlandês teve uma platéia mundial. Dia após dia, o prefeito ia morrendo, ia agonizando nas manchetes. A Inglaterra fez o diabo para salvá-lo. Mas aque­le santo nacional não se corrompeu.
A morte amadurecia no seu coração atormentado e puro. Mas falei em “platéia mundial” e preciso acrescentar que eu, garoto de seis anos, de pé no chão, fui um dos espectadores. Na minha rua, em Aldeia Campista, os moradores apostavam na sua vida e na sua morte. E quando, finalmente, ele morreu, e morreu de fome e de sede, houve uma misteriosa irritação.
Quero crer que, em Aldeia Campista, o patriota irlandês só foi amado por mim. E amado porque eu era um menino, um pobre ser ainda incorrupto. Mais tarde, compreenderia que o santo, ou herói, ou mártir, ofende e humilha os demais. Na pró­pria Irlanda, agonizou só e morreu só. A solidão do seu gesto, até hoje, ainda me fere de espanto.
Foi talvez o último herói do século. Não sei se exatamente o último. Vá lá — “o último”. Em nosso tempo, só conhece­mos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se viu uma Joana D’Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E, de­pois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembléia, uma unanimidade.
Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simples­mente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão. Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. E, quando está só, o homem começa a ba­bar de pusilanimidade. As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência.
Hoje, o prefeito irlandês seria uma rigorosa impossibilida­de. Não teria sentido a sua feroz solidão. Sentiríamos falta, no episódio, da assembléia, do comício, da massa. E daí porque há, em nosso tempo, o ódio ao herói. Não existe figura mais indesejável, antiga, inválida, espectral.
Ainda há pouco, viu-se a França levantar-se contra De Gaulle. Lembro-me de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. Disse eu, linhas atrás, que o prefeito irlandês, em sua inútil greve de fome, fora o último ca­so de heroísmo solitário. Faço a correção: — existe também De Gaulle. Outro dia, uma estagiária do Jornal do Brasil veio perguntar-me: — “Qual a sua opinião sobre De Gaulle?”. Eu po­deria ter dito: — “De Gaulle é o passado”. E estaria certo. O herói é o passado.
Mas como ia dizendo: — o país se levantou contra o mito. Estudantes levavam cartazes assim: — “De Gaulle assassino”, “Fora De Gaulle” etc. etc. E o prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria França é o pas­sado. Diante de nós está a anti-França.
No momento em que o país se matava em greves, De Gaul­le fez um pronunciamento. Disse: — “Eu sou a Revolução”. Mas vejam a obstinação com que ele se diz “eu”. Usa uma lingua­gem morta, até o último vestígio. Ao se apresentar como o últi­mo “eu” do século, De Gaulle pôs entre ele e o seu povo toda uma distância irreversível.
Dirá alguém que os paralelepípedos foram repostos, que não há mais carros virados e que apagaram o incêndio da Bol­sa. Por outro lado, os operários que seqüestraram os gerentes já os devolveram. Tudo isso é certo. Mas nada impede que De Gaulle seja o puro e irremediável passado. O herói está só e ca­da vez mais só. Sei que o resultado das eleições parece uma res­surreição. De Gaulle ganha por toda a parte. Mas é preciso ver o que há de aparente, de ilusório, de efêmero em tal vitória. São os cem dias napoleônicos.
O que se passou entre ele e o seu povo é uma incompatibilidade irremediável, fatal. A França das assembléias, das maio­rias, das unanimidades, não aceita mais o herói solitário e formidável. De Gaulle não sabe que está morto, e faz discursos.
[27/6/1968]

2 comentários:

Julio Cesar Corrêa disse...

Ah, Nelson! Que falta vc nos faz, com suas frases esmagadoras. Embora, nem sempre concorde com os seus pontos-de-vista, admiro todos aqueles que sacam os seus e atiram. Fico imaginando Nelson com um site na internet, comentando sobre o Obama, sobre o Lula ou o Chaves. Como ele os chamaria?
Amei o seu blog e atirarei aqui a minha âncora, afinal sou amante do teatro tb. Não apareci a mais tempo pq estava viajando.
bj e ótimo carna

P.S. Vc é de POA? procure no Bala um post que fiz sobre essa cidade que mora no meu coração. "Esqueça Um Bonde Chamado Desejo" é o título.

Julio Cesar Corrêa disse...

Jana, fique à vontade!
bj