quarta-feira, 18 de março de 2009

ADMIRÁVEL DEFUNTO

Uma coluna diária precisa ter um elenco variadíssimo. Sim, um elenco colorido de mágicos, trapezistas, clowns, arquitetos, cineastas, heróis, estudantes, intelectuais e pulhas. Quando o colunista precisa de um mímico, tem o mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se é o intelectual, há o intelectual.
Fiz esta breve introdução para concluir: — as minhas confissões vivem de um elenco assim. Meus protagonistas e meus comparsas dariam para lotar uma platéia de Fla-Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é exatamente o “defunto vo­cacional”. Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o lei­tor há de perguntar: — “Por que defunto e por que vocacio­nal?”. Tentarei explicar.
Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou por mim e acenou-me com os dedos: — “Salve!”. Balbuciei, lívido: — “Salve”. E fiquei olhando o outro afastar-se e sumir na multi­dão. Mas por que o meu espanto e por que o meu horror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e florira umas cinco vezes.
Dirá alguém: — “Ilusão”. Seja ilusão. Mas o “defunto vocacional” cumprimenta como os outros, e calça como os ou­tros, e tem gravata como os outros. E dá sempre a sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nas narinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim uma máscara da cor de certas pinceladas amarelas de Van Gogh.
Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei. Imaginem vocês que recebi um telefonema fantástico. Era alguém que de­sejava de mim uma entrevista imaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era uma voz fininha de criança que bai­xa em centro espírita. Fiz-lhe a pergunta assustada: — “O se­nhor tem mesmo essa voz?”. Jurou que tinha. E eu: — “Mas quem é o senhor?”. Veio a resposta terrível: — “Sou o homem de bem”.
Ora, eu estava certo de que o homem de bem era, precisa­mente, “O Grande Defunto”. Ninguém tão morto e ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missa mandada rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que alguém saísse da tum­ba e pedisse uma entrevista imaginária. Seriam ambos imagi­nários: — a entrevista e o homem de bem.
Tive de usar de franqueza: — “Meu amigo, vai-me descul­par, mas o senhor já morreu”. Há uma pausa lúgubre. E, depois do suspense, diz o homem de bem: — “Obrigado pela informa­ção”. E desligou. Viro-me para os colegas e, puxando um cigar­ro, digo-lhes: — “O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu”.
Volto para a minha mesa. Bate novamente o telefone. Avi­so: — “Se for o homem de bem, não estou”. Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta: — “Quem quer falar com ele?”. Pausa. O contínuo repete: — “Quem? O canalha?”. Al­guém que se dizia “o canalha” queria falar comigo. Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse eu solicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha. Do outro lado da linha, diz alguém: — “Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar uma entrevista imaginária. Pode ser?”. Fiz-lhe a primeira pergunta: — “Quem é o senhor?”. E o outro, com a voz de quem está mascando chicletes: — “Já disse. Sou o canalha”.
Tive de explicar-lhe: — “Meu amigo, já temos um canalha oficial. Nunca ouviu falar no Palhares, o que não respeita nem as cunhadas?”. Respondeu, com radiante vaidade: — “Sou muito pior do que o Palhares”. Era uma bravata óbvia. Digo: — “Es­cuta. O Palhares beijou a cunhada no corredor. E o senhor? Va­mos lá. Qual foi a sua ignomínia?”. O outro dá uma risadinha de Chaliapine em Mefistófeles: — “Só responderei no terreno baldio”. Faço uma pausa. Estou achando a voz muito moça. Per­gunto: — “Afinal, que idade tem o senhor?”. Eis a resposta: — “Dezessete anos”.
Ao ouvir falar em “dezessete” tremo em cima dos sapatos. Faço-lhe reverências de Michel Zevaco: — “Peço-lhe mil des­culpas. Eu não sabia que o senhor era o jovem. Pode vir. O ter­reno baldio jamais fechará suas portas para o jovem”. Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias devem começar à meia-noite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O jovem foi sar­cástico: — “A meia-noite é uma ilusão”. Seja como for, foi mag­nânimo; e aceitou o tenebroso horário. Assim me despedi: — “Salve, jovem canalha!”.
Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno bal­dio: — “Sou eu. Manda providenciar papel picado e listas telefô­nicas. Vamos receber a mais ilustre visita de toda a história do terreno baldio”. Pergunta, pálido, o contra-regra: — “Quem?”. Imaginou, por certo, que seria um rajá montado num elefante. Disse-lhe: — “O jovem canalha!”. Era honra demais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia emocional, quase desfaleceu no telefone: — “Não merecemos tanto”. Trato de instigá-lo: — “Capricha, capricha!”. Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo apanho o primeiro táxi. Arquejo: — “Me leva no ter­reno baldio. Chispa”.
Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas, os caramujos estão assanhadíssimos: — “Cadê o jovem canalha?”. Tenho que pedir calma. Chamo as pulgas: — “Modos, hem, modos”. Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias, um burro, pensativo, pastava. E, súbito, a cabra põe a boca no mun­do: — “Evém o jovem canalha!”. Era a pura verdade. Vinha ele e com as costeletas ao vento. Mas não vinha só. Uma massa o seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ga­nhou! Já ganhou!”. De um lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o pati­fe entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr. Al­ceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.
Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-de-cerimônias anunciou os títulos do entrevistado: — “É estudante, mas não sabe nada, porque onde se viu estudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete”. Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceu co­meça a gritar: — “Tem a razão da idade!”. A massa coral de gafanhotos, sapos, pulgas, camaleões, pôs-se a repetir: — “Tem a razão da idade! Tem a razão da idade!”. E, súbito, fez-se o maior silêncio da terra. O “jovem canalha”, de viva voz, ia contar o feito que estava justificando aquela apoteose. Com ra­diante modéstia, disse tudo: — “Não fiz nada demais. Estão exa­gerando. Simplesmente, havia uma menina reacionária. Tão rea­cionária e obscurantista que namorava de mãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina. Batemos no namorado”. Pausa, sus­pense. E, então, limpando as unhas com um pau de fósforo, con­cluiu: — “Eu sou um co-autor do jovem estupro”. Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfal volta olímpica.
[21/9/1968]

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