quinta-feira, 19 de março de 2009

O ESPANTOSO SILÊNCIO

Hoje, a praça de São Marcos tem mais turista americano do que pombo. E muitos, inadvertidamente, dão milho aos ameri­canos e deixam os pombos a ver navios. Graças a Deus, a nossa Cinelândia ainda não foi invadida pelos nossos irmãos do Nor­te. De sorte que, lá, os pombos ainda constituem uma sólida maioria. Diria mesmo que a Cinelândia tem mais pombos do que o soneto de Raimundo Correia. E são tão mansos, de uma tal docilidade, que parecem amestrados. Todas as manhãs e todas as tardes vem uma mão anônima e amorosa dar-lhes milho. O que então acontece é uma espécie de milagre, de suave mila­gre. Às centenas, aos milhares, sei lá, descem pombos de não sei que misteriosos telhados, de que encantados beirais. É lin­do vê-los dando pulinhos e bicando o milho.
Mas não é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os pombos da Cinelândia devem ter visto coisas do arco da velha. Temos três locais altamente politizados: — o lar­go de São Francisco, o largo da Carioca e a Cinelândia. Os dois primeiros ainda estão ressoantes de velhos comícios espectrais. Em especial, o largo de São Francisco.
Certamente, vocês já ouviram falar na “Primavera de san­gue”. Foi metáfora e foi manchete. Mas vamos aos fatos. Há uns quarenta anos, ou cinqüenta, os estudantes resolveram fazer o enterro simbólico do então chefe de Polícia. Foi proibida a pas­seata ou por outra: — não foi proibida. O chefe de Polícia autorizou-a. E, então, os estudantes concentraram-se, exatamen­te, no largo de São Francisco. Lá estavam o caixão, as velas ace­sas, com os estudantes chorando falsamente o pseudodefunto.
Quando, porém, saiu o enterro, três ou quatro policiais, à paisana, infiltrados na massa, esfaquearam e mataram dois estudantes. Um dos repórteres presentes dispara para a redação. Lá chegando deu à luz a metáfora: — “Primavera de sangue”. O diretor do jornal, num arroubo perdulário, puxou uma cé­dula e a enfiou na mão do estilista. No dia seguinte, a manchete sangrava no alto da primeira página.
A metáfora quase pôs abaixo o governo. E, até hoje, há sempre um velho profissional, que se lembra da “Primavera de sangue”. Também na Cinelândia houve memoráveis explosões cívicas. E os pombos de lá, como uma alada platéia, a tudo as­sistiam, arrulhando os seus aplausos e as suas vaias. E, se um deles tivesse de redigir suas memórias, havia de conceder um especial destaque ao comício da escola de belas-artes. Trata-se de um episódio que, na época, encheu a cidade de um diverti­do horror.
Eis o caso: — certo dia, os pombos da Cinelândia foram surpreendidos por uns trinta ou quarenta rapazes. Num golpe de mão, os jovens ocuparam as escadarias do Municipal. Os pombos imaginaram que a rapaziada ia falar do Vietnã, o assun­to da moda. Engano. Simplesmente, estavam ali para um comí­cio de um tipo jamais suspeitado. Ninguém xingou os Estados Unidos. O primeiro orador anunciou a morte da palavra. O se­gundo também anunciou a morte da palavra. E assim o tercei­ro, o quarto, o quinto oradores. Como fizeram cinco discursos e todos vociferando a mesma coisa, pode-se dizer que a pala­vra morreu cinco vezes.
Os pombos se entreolhavam, num mudo escândalo deso­lado. Não entendiam nada. Mas nisto chegou o momento do mi­lho. Dez minutos depois, voltam os pombos. Eis o que viram: — os rapazes estavam rasgando poemas de amor. Com tal ges­to queriam demonstrar que a nossa época não comporta nem a palavra, nem o amor. Era meio estranho que latagões, aparen­temente válidos, tivessem tal desgosto do amor e, por conse­qüência, da mulher. Por fim, retiraram-se, gloriosamente, os rapazes. E, então, ruflando as asas e sacudindo as penas, os pom­bos voltaram para o soneto de Raimundo Correia.
Passou. De vez em quando, porém, lembro-me do episó­dio e faço da “morte da palavra” um tema de meditação fúne­bre. Até hoje, não sei se a palavra está morta. Admito que se possa fazer um romance sem palavras, um conto sem palavras, um soneto sem palavras e até um recibo sem palavras. Admito que, futuramente, um novo Tosltoi venha a fazer uma outra Guerra e paz sem título e com 1200 páginas em branco. Não consigo imaginar, porém, que certas situações vitais possam dis­pensar a palavra.
Pode-se admitir um flerte mudo. Todavia, não se conhece um flerte eterno ou, pelo menos, que tenha chegado às bodas de prata ou de ouro. Um flerte dura escassamente os quarenta minutos de um chá, de um desfile, jantar etc. etc. Em seguida, tem de entrar a palavra. Homem e mulher não podem ficar eter­namente olhando um para o outro. Conheci um paulista que era, por índole e por fatalidade geográfica, um introvertido. Fa­lava pouquíssimo. Um dia, apaixonou-se. Não tirava a vista do ser amado. O pior é que a moça estava achando o silêncio uma prova de alma profunda, inescrutável e fascinante. Até que, um dia, o paulista resolve falar. Aproxima-se da bem-amada e sussurra-lhe: — “Rua tal, número tal, apartamento 1015, últi­ma porta à direita. Cinco da tarde”. Para um paulista, ainda mais quatrocentão, era um esforço vocal insuportável. E teve que se sentar, mais adiante, com as pernas bambas e a vista turva.
Claro que esse mutismo atroz é, no amoroso, uma exce­ção escandalosa. Seja como for, mesmo o paulista citado teve que dizer um endereço e uma hora. A dama achou, com isso, que o ser amado era de uma prolixidade inefável. Normalmen­te, ninguém ama sem uma inestancável torrente verbal. Tive um colega que dava para a namorada telefonemas de oito horas. Nem ele nem ela faziam uma pausa. Falavam ao mesmo tempo, e tanto a pequena como o rapaz não entendiam o que o outro dizia. Mas falei do paulista e agora me lembrei: — há pior, há pior.
Quem me contou o episódio foi Marcos André. Vocês co­nhecem, decerto, o admirável colunista. Eu o admiro por vá­rios motivos e mais este: — Marcos André andou pela China, pelo Japão, por Formosa. Viu paisagens, flores, lagos jamais so­nhados. Quando o leio lembro-me do nome azulado, lunar, de Pierre Loti. E, como este, Marcos André conhece a China ante­rior a Mao Tsé-tung e, portanto, a China do ópio.
Em Hong Kong, o colega foi testemunha da mais linda e silenciosa história de amor. Conta Marcos André que certo mi­lionário brasileiro foi traído pela esposa. Quis gritar, mas a in­fiel disse-lhe sem medo: — “Eu não amo você, nem você a mim. Não temos nenhum amor a trair”. O marido baixou a cabeça. Doeu-lhe, porém, o escândalo. Resolveu viajar para a China, certo de que a distância é o esquecimento. Primeiro, andou em Hong Kong. Um dia, apanhou o automóvel e correu como um louco. Foi parar quase na fronteira com a China. Desce e per­corre, a pé, uma aldeia miserável. Viu, por toda a parte, as faces escavadas da fome. Até que entra na primeira porta. Tinha sede e queria beber. Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê sur­gir, como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio de sordidez tamanha, parecia um delírio.
O amor começou ali. Um amor que não tinha fim, nem prin­cípio, que começara muito antes e continuaria muito depois. Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro. Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi perceben­do esta verdade: — são as palavras que separam. Durou um ano o amor sem palavras. Os dois formavam um maravilhoso ser úni­co. Até que, de repente, o brasileiro teve que voltar para o Bra­sil. Foi também um adeus sem palavras. Quando embarcou, ele a viu num junco que queria seguir o navio eternamente. Ele fi­cou muito tempo olhando. Depois não viu mais o junco. A meni­na não voltou. Morreu só, tão só. Passou de um silêncio a outro silêncio mais profundo.
[22/9/1968]

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