segunda-feira, 2 de março de 2009

ÓRFÃOS DE ROSAS

E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos. A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Esta­va com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandá­lias. Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.
Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d’água precisa be­ber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, me­lhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.
Que dizia o pau-d’água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — “A grã-fina não tem alma”. Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — “Todas?”. E o bêbe­do, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — “To­das!”. Foi então que alguém objetou: — “É um erro generalizar”.
Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d’água, na sua cólera fácil, explodiu: — “Erro, vírgula; erro, uma ova!”. Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — “Há uma exceção” — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — “Há uma exceção”. Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.
O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — “Fulana!”. Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — “Eu explico, eu explico!”. E disse, por fim: — “Leu as orelhas de Marcuse!”. A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela).
Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, ti­nha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da últi­ma passeata. Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas.
Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — “Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa”. Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — “Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma ro­sa” (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eter­namente rosa. Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — “A senhora tem uma rosa em seu jardim?”.
A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — “O autor do meu jardim é o Burle Marx”. Para o ébrio, a au­toria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — “Vamos ver! Quero ver!”. Organizou-se uma súbita expedi­ção ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — “O Burle Marx é um gênio! Um gênio!”.
Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação va­gamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhu­ma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — “É mesmo! É mesmo!”. O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava. Dizia, em arrancos: — “O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!”.
Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um ou­tro: — “Há quanto tempo você não vê uma rosa?”. Um confes­sou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — “Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!”. Va­rado de indignação, berrava: — “Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?”. Interpelava os pre­sentes, damas e cavalheiros: — “Somos cabras?”. Embora pa­recesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — “Não, não, não!”.
E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre. Só quem falava era o bêbedo nato. Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flo­res. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacio­nal achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas. Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defun­tos têm flores. Eu continuava um maravilhado ouvinte de tan­tas opiniões ilustres.
E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — “As passea­tas vão salvar o Brasil”. Alguém duvidou: — “Por que, meu Deus?”. A papada do gordo vibrou: — “É o povo! É o povo!”. Falava e o suor pingava da papada como um pranto.
E, então, o bêbedo teve outro rompante: — “A passeata não salva ninguém!”. O gorducho bramava: — “É o povo! E o povo!”. Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concor­davam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — “Po­vo nenhum! O povo não se meteu!”. Na ira de sua embriaguez, teimou: — “Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!”.
Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário. O pau-d’água começou a chorar: — “Sa­bem quem estava lá?”. Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — “Quem estava lá eram as classes domi­nantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!”. E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nos­sas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes do­minantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Ave­nida. As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.

[31/7/1968]

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