sexta-feira, 20 de março de 2009

“EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN”

Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — “O hospital é mais importante do que o teatro”. Não me lem­bro se escreveu exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a ênfase, a certeza de quem anuncia uma verda­de inapelável e eterna. Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — “O hospital é mais importante do que o teatro”.
Fiz para mim mesmo a pergunta: — “Será?”. Já me pare­ceu imprudente que se comparassem funções e finalidades di­ferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospi­tal? Por outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde, possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William Shakespeare.
De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão. Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a berrar: — “Viva o teatro e abaixo o hospital!”. A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro.
É óbvio que a importância das coisas depende de nós. Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República, ou uma burleta de Freyre Júnior, é uma delícia to­tal. Mas volto ao Paulo Francis. Alguém que lesse o artigo cita­do havia de pensar: — “Bem. Esse crítico deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica. E, por is­so, prefere o hospital”. Engano. Repito que, ao escrever aqui­lo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?
O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plás­tico. Ah, as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose tcheca mais agressiva. E as varia­ções do nosso histrionismo chegam ao infinito. Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.
Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hél­der. Está aqui na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento. Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras. Domingo, na tv Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou: — “Você precisa parar com o d. Hélder”. Faço um espanto: — “Por quê?”. E ele: — “Você está insistindo demais”. Pausa e completa: — “Você acaba fa­zendo de d. Hélder uma vítima”.
Disse-lhe da boca para fora: — “Você tem razão, Gugu”. E paramos por aí. Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu. Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — “Ele! Sempre ele!”. Falava de Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas suas bar­bas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o autor de Os miseráveis: — “Ele! Sempre ele!”. Realmente, sou um território solidamente ocupado pelo queri­do padre.
Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma pre­sença obsessiva, sim, uma presença devoradora. Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e levantei-me. Fui procurar uma leitura. Pro­cura daqui, dali e acabei apanhando um número de Manchete.
E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insô­nia foi ocupada pela sua figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida passei à leitura. E há um mo­mento em que o arcebispo diz, por outras palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível guerra en­tre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em nossa infinita obtusidade.
Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças; se a otan começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no subdesenvolvimento. Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece inédito.
E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma bar­riga me ocorre: — Mao Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de “tigre de papel”. Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d. Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coi­sa. O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz. Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, pergun­tará por essas crianças.
Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear não importa. Eis o que eu não disse ao Gugu: — co­mo esquecer uma figura que diz coisas tão corajosas, inteli­gentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo. Jorge Ama­do tem uma personagem que vive puxando barbantes ima­ginários que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais.
Continuemos, continuemos. No dia seguinte, veio o “Marinheiro Sueco” trazer-me, em mão, um jornal colom­biano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hél­der. Ele começava na manchete: — “el arzobispo de la revolución”. Em seguida, outra manchete, com a declaração do arzobispo: — “es más importante formar un sindicato do que construir un templo”. Eis o que eu gostaria de notar: — na “Grande Revolução”, os russos substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a “Grande Revolu­ção” se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatu­ral etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto, ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas. Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — “Es Más Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo”. E se o nosso Hélder o diz, esteja­mos certos: — é um ex-católico e, pior, um anticatólico.
[25/9/1968]

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