sábado, 21 de março de 2009

OS CENTAUROS

Fala-se em “Poder Jovem”, na “Jovem Revolução” e um padre de passeata, em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de “a mãe do Jovem Salvador”. Vejam: — é tão im­portante ser jovem que já se providenciou uma idade promo­cional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da ida­de. Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e que façam o mundo à sua imagem e semelhança.
A meu ver, porém, chegou a hora de se falar também da “jovem obtusidade”. Que ela existe como uma realidade con­creta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se me pedi­rem fatos, eu direi: — “Vamos aos fatos”.
Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que se refere ao frio em termos de “julgamento mo­ral”. Quando a aragem vai gelando os edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar: — “Ah, frio canalha! Ah, frio indecen­te!”. Para a sua indignação, o frio era “torpe”, era “obsceno”, era “sórdido”. Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta, pessoal e crudelíssima.
Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar o teipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um bangue-bangue. Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia. Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, só mocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era uma paisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovens ficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para o filho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.
Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer uma plástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc. etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meia-idade, uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem co­roa e ocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Ima­ginei que estaria, ali, a melhor juventude paulista.
E era de um óbvio escandaloso a politização dos presen­tes. Sempre que uma letra fazia uma insinuação política, ou ti­nha um arroubo ideológico, ou rosnava para os Estados Uni­dos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram as me­ninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos e batendo com os saltos, um no outro. Ninguém sa­bia se estava aplaudindo ou vaiando. Ah, os rapazes, os rapa­zes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos cen­tauros.
Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De um altíssimo patético foi a aparição do sr. Cae­tano Veloso. Ah, esquecia-me de Vandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo, de uma ironia finíssima: — “Pra não dizer que não falei de flores”. E, realmente, para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo con­tra as flores. Até hoje ainda não sei o que é que o nosso libertá­rio propõe. Vejamos algumas hipóteses: — quererá ele dizer que a “Grande Revolução” vai acabar com as flores? Ou que só a burguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que o revolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor sem chutá-la? Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamente inescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o per­ceba, tais metáforas são absolutamente contra-revolucionárias.
Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plu­mas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia. A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vi­nha, ali, cantar; simplesmente cantar. Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha soleni­dade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, a guarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Não me admiraria nada que, no futu­ro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua.
Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Velo­so. Ninguém reage melhor do que ele mesmo. Quis cantar e es­magaram seu canto. A massa coral repetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de um artista, um desesperado artista que se propunha a cantar o “É proibido proi­bir”. A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraíso socialista. Já nenhum telespectador supor­tava mais a humilhação, que se transferia para as casas. (E a jo­vem massa insistia no refrão torpe.) Súbito, os brios de Caeta­no Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali.
Ele começou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nos trajes mais impróprios para o seu rompante. Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades que estavam mudas, sim, as verdades que pre­cisavam ser ditas — urgentes, inadiáveis e santas verdades. Ain­da bem que milhões de telespectadores as ouviram.
Se bem me lembro, eis as suas palavras: — “É isso a juventude? E vocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendem nada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendem de música, desgraçado Brasil!”. Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Veloso comparou, e com exemplar justiça, as duas ver­gonhas: — a vaia obscena e a invasão do Teatro Ruth Escobar. Naquela ocasião, depois do espetáculo de Roda viva, uns qua­renta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou: — “Estou grávida!”. Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor do nosso Vandré. E dizia Caetano Velo­so: — “Vocês não são melhores! São iguaizinhos!”.
Os idiotas da objetividade hão de perguntar: — “E a peru­ca? E as plumas? E o batom? E o salto alto?”. Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignação à Zola. Quando mor­reu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo: — “Zola foi um momento da consciência humana”. No teipe de sábado tivemos, pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimos como a sua implacável lucidez acuou e bateu a “jovem obtusidade”.
[26/9/1968]

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