segunda-feira, 23 de março de 2009

HERÓI E MÁRTIR

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar nu­ma capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa. E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbra­do nato pelas jóias caras.
E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás. Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um con­tínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles. Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — “Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino”.
Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã. O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — “Que diálogo! Que diálogo!”. Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se con­tentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligen­te, e dizia: — “A mulher brasileira não chega aos pés da france­sa”. O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi. E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — “o Brasil é um país de quinta ordem”. E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — “O brasileiro não sabe fazer uma frase”.
A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França. Quando o táxi passou pelo relógio da Gló­ria, eu pensava em D’Annunzio e na sua prodigiosa magia ver­bal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — “Por quê? Por quê?”. Fisicamente, D’Annunzio era o antifauno — pe­quenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D’Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.
Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gê­nio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase. Vejam a últi­ma “Revolução Francesa”. Evidentemente, ninguém queria cor­tar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por to­dos os idiomas, é a já insuportável “É proibido proibir”. Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo. Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa fran­cesa. “É proibido proibir”, mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem mo­dernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da “jovem irracionalidade” varreu a França.
Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro “não sabe fazer uma frase”. Dirá um patriota de penacho: — “Mas é injusto! Injusto!”. Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.
Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vo­cês se Pedro i, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia. Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquís­simo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em so­fás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosida­de, de praia, de Antonio’s — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.
E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase corresponden­te. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como pare­cia, de uma inveracidade total. O brasileiro senta como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.
Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o “É proibido proibir”. Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um ver­so que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entra­nhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mes­mo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.
Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológi­cas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamen­te, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil hou­ve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera. É pouco. O lei­tor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.
[28/9/1968]

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