terça-feira, 24 de março de 2009

A IRA DE VANDRÉ

Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores das gerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia do patético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra; morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou até de asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem, com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam a morta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em que a morte era mais promocional do que a vida.
Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é o Eça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cena deliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como um santo. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali, olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvez camélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma no­bre e inconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta: — “Não dança?”. O rapaz ergue a fronte diáfana e responde: — “Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?”.
Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não pode sorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal, toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor so­cial, humano, histórico, é o nosso Geraldo Vandré. Quem não o conhece? Com o seu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se uma súbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam os rádios, vejam as tvs. A fulminante cele­bridade de Vandré é de uma evidência estarrecedora.
E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram. Vandré concorria ao Festival com a sua “Pra não dizer que não falei de flores”. Segundo se diz, ele devia tirar o pri­meiro lugar. Vai o júri e dá-lhe um mísero e franciscano segun­do lugar. Antes, porém, de passar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré. Vamos lá.
Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe: — “Boa noite”. Ora, a um cumprimento responde-se com outro cumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fa­zer. O Vandré, porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro. Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosse agredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado: — “Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?”. O outro tomou o maior susto: — “Eu não tive intenção! Eu não tive intenção!”. E, real­mente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção, senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos: — “Você não vê que estão morrendo no Vietnã?”. O autor do imprudente “boa-noite” quase correu, fisicamente, do Vandré.
Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagero caricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Viet­nã está lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Van­dré, a distância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reage como se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisa estivesse juncado de vietcongs defuntos. Nar­rei o episódio para caracterizar o artista: — será nosso contem­porâneo apenas nos ternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura das gerações românticas. Já os familiares e co­nhecidos evitam cumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre.
Dito isto, passo ao Maracanãzinho. Domingo, ia ser esco­lhida a música brasileira para o Festival Internacional da Can­ção. Não sei por que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré, que sua letra e sua música iam ser as ganha­doras fatais. Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum que qualquer competição, seja o prêmio No­bel ou de cuspe à distância, tem os seus imponderáveis. A co­meçar pelos juizes. São quinze sujeitos e temos de admitir a “ver­dade de cada um”, verdade que foi, como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seus partidários, que eram numerosos e ululantes, estavam maravilhosamente certos da vi­tória.
Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram “Sabiá”, de Chico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonan­do para casa: — “Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!”. Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem, também não aceita um reles se­gundo lugar. O resultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia.
Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera uma colocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugar fosse a mais hedionda das lanternas. Os que estavam lá, no Maracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palco uma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara, o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e com prodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a be­la, forte, crispada e jovem cara de Vandré.
Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu pa­tético, mas o telespectador, sim. Para nós, de casa, a cara de Van­dré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras ce­sarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si: — “Abro ou não o verbo?”. Seria o comício.
Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, feroz­mente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hoje comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro lado, era amigo do Chico e do Tom. Mas eis o que eu queria dizer: — um con­corrente frustrado só devia aparecer de máscara, como nos ve­lhos carnavais. Apenas o primeiro colocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu.
Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentes vitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essa concessão às boas maneiras. Mas um artista não pode ser convencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o co­mício. Foi quando começou: — “Nem tudo é festival!”. Disse isso e não foi além. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento. Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo e impotente.
Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim. Ao saber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribun­da. Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jo­bim, na vitória, devia ser exibida por todo o Brasil. Como é trá­gica a euforia do subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos, fez músicas para Sinatra, é uma glória in­ternacional. Só faltou atirar beijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americano embolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe um favor como se estivesse fazendo um favor ao favor. E o nosso Tom, ao impacto do triun­fo, quase foi para a tenda de oxigênio.
[1/10/1968]

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