domingo, 22 de março de 2009

O ÚNICO DE GAULLE

Uma das maiores festas populares do velho Rio era o “gran­de enterro”. Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem ne­nhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o “grande homem”.
Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisa­vam: — “Evém! Evém!”. Mas eu disse que ninguém chorava o “grande homem” e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.
Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverên­cia, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse. Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o “grande homem” até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se jus­to ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — “Você está muito gordo”.
No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, nin­guém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro pareci­do. Cabe então a pergunta: — e por quê?
Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil. Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escul­tor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confes­sou que não vira, jamais, um “grande enterro”.
Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos “gran­des homens”. Houve a dúvida: — “Vivos ou mortos?”. Con­vencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma bus­ca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — “Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?”. Até que, cerca das qua­tro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — “O Brasil não tem um gran­de homem para enterrar”.
Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, nu­ma carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frus­tração: — “É impossível que o Brasil não tenha um grande ho­mem”. Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — “Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?”. Protesto do dono da carona: — “A primeira virtude do grande homem é não ser inédito”. Quan­do saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro.
E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o proble­ma na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passea­tas, justamente a mais concorrida, a dos “100 mil”. Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancis­tas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, in­telectuais de todos os tipos, cineastas. Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — “São os que pensam”. E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — “Vai haver o diabo”.
O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se jun­tam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a “Grande Revolução”. Até que se ouviu a palavra de ordem: — “Vamos sen­tar”. A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inver­sa: — “Levantar”. Tal e qual no anúncio do “senta e levanta”. Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satis­feitos e cada qual foi para casa.
Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado? Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — “O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto”. Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.
Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemen­te, vimos a nova “Revolução Francesa”. Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em greve. Estudantes chamavam De Gaulle de “o as­sassino”. O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, nin­guém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não ha­via um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaul­le, único grande homem francês.
Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um arti­go confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua “mor­te”. Durante a “jovem revolução”, o famoso ator, com um opor­tunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte al­çada, completou: — “Barrault morreu”. Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina. Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande ho­mem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — “Rua! Rua!”. E o artigo do “morto” vem plangente de uma funda e inconso­lável nostalgia do salário. Seja como for, a “jovem revolução” ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.
[27/9/1968]

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