quarta-feira, 25 de março de 2009

REVOLUCIONÁRIO DE FESTIVAL

Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de Ge­raldo Vandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor esta­vam mais eriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco an­tes, ao executar o seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comícios do Brigadeiro. A massa gritava: — “Já ganhou, já ganhou!”. Também domingo os fiéis de Vandré ber­raram: — “Já ganhou, já ganhou!”.
E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de “Caminhando” foi o maior espanto da terra. Apunhalado por um segundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou, fisicamente. E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio que bem merecia estar inserido nas obras completas de William Shakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinal exterior e concreto de sua ira.
Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permane­ceu dentro de Vandré. Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as caras não mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhum mistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pe­dia aos seus devotos: — “Aplaudam Tom e Chico, como se fos­se eu!”.
Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mes­mo vaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como se aplaudisse. Contei o caso da universitária que, em São Paulo, arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguém sabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiando ou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. No Maracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.
Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça? Admita­mos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna. E que “Sabiá” não merecia nem a lanterna. Admita­mos tudo isso. Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser feste­jado e não chorado. Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, não há nada mais promocional do que a injustiça. O “injustiçado” assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, é lambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenham carregado o Vandré na ban­deja, e de maçã na boca, como um leitão assado.
Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. “Para não dizer que não falei de flores” é uma bela canção. Não há dúvida. Bela canção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo: — “Sou contra ‘A Marselhesa’! Não topei ‘A Marselhesa!’“. Custei a entender que ele falava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meu amigo deu-me a pista exata. Era uma desla­vada “Marselhesa”.
Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Van­dré está fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para o social, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chi­co, ou o Tom, pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandré sonha com a grande comunicação. E, en­tão, quis fazer “A Marselhesa”. Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, o que foi a execução de sua obra. Per­deu noites, na fremente elaboração. Mas quando acabou a sua “Marselhesa” — saiu-lhe a anti-“Marselhesa”.
Aí está, como eu dizia, o defeito. Lenin falou no “ópio do povo”. O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo, repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de músi­ca que o sujeito deve ouvir na rede, abanando-se com a Revis­ta do Rádio. Quase uma berceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivesse fazendo o povo dormir. Repito que nunca se viu uma “Marselhesa” tão pouco “Marselhesa”, tão anti-“Marselhesa”.
Dirá alguém: — “E a letra?”. De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso “injustiçado” fez o libreto para a ópera errada. Há, sim, entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompa­tibilidades totais. É só prestar atenção. Uma coisa não tem nada a ver com outra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há de mais impróprio, de mais ineficaz para resolver as ‘cóleras, sim, as cóleras que dormem nas entranhas populares.
Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito, explode na vida brasileira uma nova figura: — o “revolucioná­rio de Festival”. Vocês entenderam? Trata-se do herói sem ris­co. Claro que outros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na nova e jovem “Revolução Francesa”. Milhões de franceses entraram no movimento. Pois bem. E não morreu nin­guém. Não houve um morto e, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-se muito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos os carros, a “revolução” não teve nem os atropelados dos dias úteis.
Eis o óbvio ululante: — o “revolucionário de Festival” não mata, nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância. Por exemplo: — o Roldão. Fez outra “Marselhesa” que se chama “América, América”. Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbas cínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante de nós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá, de vez em quando, uma rata­zana devora um recém-nascido.
E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de “Amé­rica, América”. Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o “revolucionário de Festival” não toma conhecimento do Brasil. Aqui mesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obra-prima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava este cartaz: — “Muerte” etc. etc. Adian­te, outro: “Independiencia o muerte”. E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro se põe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.
Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: — “Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?”. Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a dis­tância que há entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo co­lossal, que é o Brasil. Ninguém apontará um “revolucionário de Festival” que mencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta mísera terra. Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram na sua berceuse.
[2/10/1968]

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