quinta-feira, 12 de março de 2009

MADRUGADA DE 13 DE JANEIRO

Vou ver o Juarez, no Banco Nacional de Minas Gerais, ali na esquina de Ouvidor com Avenida. Tomo o elevador, salto na sobreloja. E, no corredor, sou recebido com uma saraivada de versos. Um funcionário ergue o gesto e declama: — “Ma­drugada de 13 de janeiro/ Rezo chorando o ofício da agonia” etc. etc. Perfilo-me como se aquilo fosse, não um soneto, mas o próprio Hino Nacional. E continua o rapaz, trêmulo de bele­za: — “Sem um gemido assim como um cordeiro”.
E, de repente, instalou-se, naquela sobreloja, o clima de Augusto dos Anjos. Sua tuberculose tossia para mim. O poeta fala­va da morte do próprio pai. Saíra para o jardim, ou quintal, e achou em tudo “o mesmo abismo de beleza”. Depois, pareceu-lhe ver, “como Elias no carro azul de glórias”, a alma do pai subir aos céus. Amém.
Quem acabava de declamar era o funcionário da portaria, Francisco Hilton Batista. Sempre que vou ao banco, ele me dis­para, à queima-roupa, um soneto. De Bilac, Raimundo ou Au­gusto. Deste último, prefere a morte do pai, que começa forte e crispada: — “Madrugada de 13 de janeiro” etc. etc. E a data, atirada na cara do ouvinte, tem um patético insuspeitado e fremente.
Entro para falar com o Juarez. Sou um brasileiro que paga, não as dívidas, mas os juros. E estou tratando justamente de juros quando entra o Batista. Vem com a bandeja e dois cafezinhos. (Eis um dos mistérios do nosso caráter: — não há brasileiro, vi­vo ou morto, que goste de café; e todos o tomam.) Depois de acertar as contas com o Juarez, saio. Paro um momento junto ao Batista. Põe-se de pé e começa: — “Ainda hoje o livro do passado abrindo, lembro-me e punge-me a lembrança de­las”. Era o Bilac.
O rapaz termina o soneto; digo-lhe: — “Deus te abençoe”. E saio para a Avenida. Pensava no velho Brasil. Houve, sim, o Brasil do soneto. Do soneto e também do fraque e do esparti­lho. Era o tempo em que o nosso Afrânio Peixoto chamava Baudelaire de torpe realista. Eis a verdade: — o fraque, o esparti­lho e o soneto influíam em nossos usos, costumes, maneiras, valores e pudores. O fraque predispunha à ênfase generosa; o espartilho disciplinava as ânsias femininas; e quantas se casavam por um soneto, ou traíam por um soneto? Enfim, o brasileiro estava sempre a um milímetro do patético e do sublime.
E há o caso daquela bela senhora que amou o amigo do marido. Foi uma dessas paixões de ópera, de novela ou, ainda, de soneto. Combinaram dia, hora e endereço do pecado. Mas ela dizia que ia e, ao mesmo tempo, insinuava um escrúpulo. Confessava: — “Sou muito medrosa”. E ele, arquejante de pai­xão: — “Ou você não gosta de mim?”. Ela suspira: — “Gosto. Amo”. Mas tinha medo, não do marido, não do pai, não da so­ciedade. Pausa e novo suspiro: — tinha medo do filho.
Desta vez, o bem-amado perdeu a paciência: — “Medo de um fedelho de três anos?”. A Ana Karenina soluçou: — “Se eu for, nunca mais beijarei meu filho!”. O garotinho era o seu Juí­zo Final. Mas ele tantas fez que ela prometeu: — “Está bem. Vou”. Ele jurara que o filho não saberia nunca. Até que chegou a data do pecado. Na véspera, ela deixara o garoto, o Juízo Fi­nal, na casa da avó. E já acordou suspirando. Era a belle époque e nunca a brasileira suspirou tanto como na belle époque. En­quanto o marido tomava café, ela, cheia de papelotes na cabe­ça (era o Brasil do papelote), imaginava: — “Não sabe!”. O des­graçado passava manteiga no pão. E, ao mastigar, a manteiga vinha de volta, como uma baba amarela. Ela, varada de remor­sos, dizia-lhe: — “Limpa aqui, meu bem!”. Arquejante de apetite, o outro limpava-se na própria toalha ou na fralda da cami­sa. (Como se vê, estou exagerando.)
Mas não é nada disso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que o marido foi trabalhar e ela ficou sozinha, com seu pecado. Coincidiu que fazia um calor de rachar catedrais. E fal­tou água. Ou por outra: — o problema não foi a falta da água. Isso mesmo, não foi a falta da água. Olhava o relógio, numa es­pécie de terror. Devia estar lá às três e era meio-dia. Portanto, daí a três horas, ela estaria batendo na porta. Tomou banho. Mas, quando olhou o espartilho, pensou que teria de vesti-lo, de tirá-lo, de vestir e tirar. Começou a sentir um cansaço, um tédio, uma irritação contra o espartilho. E, depois, não era apenas o espartilho, mas o ser amado; e, pouco a pouco, vinha o tédio do próprio pecado. Pôs-se diante do espelho. Percebia, olhan­do a própria imagem, que o desejo é triste, que o desejo é vil.
Às três horas estava em casa, ainda em casa e para sempre em casa. E foi a preguiça de pôr o espartilho, a preguiça de tirar o espartilho, que a salvou. Dirá alguém que influíram outros fa­tores secundários, como, por exemplo, o calor. Vá lá o calor. Mas foi o espartilho que começou todo um processo de angús­tia sufocante. No dia seguinte, ela passa no armarinho; lá com­prou um carretel. Voltava, quando viu o ser amado, na esqui­na. Abordou-a, impulsivamente. Disse-lhe, baixo e violento: — “O que você fez não se faz. Esperei quatro horas. Está pensan­do que sou seu moleque?”. Ela não teve medo: — “Não fale assim comigo. Nunca lhe dei essa confiança”. O sujeito recuou como um agredido: — “Nunca me deu essa confiança? Escuta. Não combinamos? Hem? Não combinamos? Fala!”. E ela: — “Eu sou uma senhora casada! O senhor não sabe com quem está fa­lando!”. Ele balbuciou: — “Está tudo acabado?”. Ela disse as últimas: — “Acabado o quê? Não houve nada. O senhor não se enxerga! Quer deixar eu passar? Quer?”. O outro, branco, afastou-se, para dar-lhe passagem.
De noite, quando o marido chegou, ela o recebeu aos so­luços: — “Fui insultada!”. Contou-lhe: — “Aquele canalha fez propostas!”. O marido ouvia só, atônito. Foi apanhar o chapéu; disse: — “Volto já”. E saiu. Andando, na calçada, de fraque, pa­recia um estadista. O fraque, repito, dava mais ferocidade à sua honra conjugai. Foi encontrar o amigo, se não me engano, no Café Papagaio (exatamente, no Café Papagaio). O outro tomava cerveja, sozinho. O marido aproxima-se e diz: — “Seu cachor­ro!”. Puxa o revólver e o fuzila. O sedutor (como então se di­zia) nem se levantou. Morreu sentado. Se o ofendido não esti­vesse de fraque, talvez lhe tivesse apenas quebrado a cara. Quem sabe?
Aí está: — o espartilho frustrou um adultério e o fraque ma­tou um homem. E há também o episódio do soneto. Foi o caso de uma noiva na véspera do casamento. De tardinha (era como se dizia: — “de tardinha”) recebeu um envelope. Virou, revirou e abriu. Era um soneto e, por baixo, a assinatura do ex-namorado, por sinal, o primeiro de sua vida. Leu a primeira vez. E, depois, foi-se trancar no banheiro para reler dez, vinte, trin­ta vezes. De vez em quando, vinha alguém bater na porta: — “Está aí, Fulana?”. Estava. E a pessoa ia dizer na sala que a noi­va não saía do banheiro. A mãe explicava: — “Nervosa”. Até que, de repente, a rua ouviu aqueles gritos. Todos correram. A noiva embebera o vestido em álcool, ou querosene. E riscara um fósforo. Depois correu, dentro de casa, gritando, incendia­da. Só muito tarde alguém se lembrou de abraçá-la com um co­bertor.
Levaram a moça para a cama, enquanto chamavam a assis­tência. E, de repente, uma tia notou que algo se derretia, atra­vessava o colchão e vinha pingar no soalho. Era a banha que escorria. A velha foi apanhar uma bacia e a pôs debaixo da ca­ma. Quando a assistência apareceu, estava morta. E, por algum tempo, ouviu-se o pingo tinir na bacia. Só depois se falou no soneto. (Já usei a mesma tia, o mesmo colchão, a mesma bacia, o mesmo pingo, em crônica anterior. Desculpem.)
[17/8/1968]

Um comentário:

LUZIMAR disse...

Olá cheguei e gostei muito.

Muito boa sua cronica.

Um grande abraço.