quarta-feira, 4 de março de 2009

MÃE

Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina e repito: — não há con­versa intranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha von­tade é parar e ficar escutando. Uma simples frase, ainda que pou­co inteligente, tem a sua melodia irresistível.
Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras no poste de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eram duas gordas e uma delas perguntava à outra: — “Sabe on­de fica a praça Serzedelo Correia?”. A outra respondeu: — “É pertinho daqui. Ali”. E mostrava, com o dedo: — “Está vendo? Ali”. A primeira olha e suspira: — “Então vou tomar o ônibus”.
A distância que a separava da praça era de uma quadra. Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar um ônibus para ir de uma esquina a outra esquina? Foi mais ou me­nos o que disse a segunda senhora: — “Não precisa ônibus. Pa­ra que ônibus? Tão pertinho”. Novo suspiro da primeira: — “Es­tou tão machucada. Vou mesmo de ônibus”.
Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência to­tal. Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se “amarrotada”. E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito, tinha um halo negro, um halo que parecia feito de ro­lha queimada. Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de um boxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia, dolorosamente, lá por dentro. E, então, com­padecida, a outra quis saber: — “Mas que foi isso? Desastre?”.
Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, um clima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — “Foi meu filho que me deu uma surra”. Dizia isso sem nenhum horror, em tom castamente informativo. Era como se não fosse ela a mãe, e fosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixa passar um momento. Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. E pergunta, com relativo interes­se: — “Bateu na senhora?”. Geme: — “Bateu”. E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia, uma naturalidade he­dionda.
A primeira olha no relógio de pulso: — “Já são onze horas, meu Deus!”. E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — “Bateu por quê?”. Disse: — “Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filho tem um gênio que Deus te livre. Muito ner­voso”. A segunda olha no fim da rua: — “E esse ônibus que não vem?”. Espia de novo o relógio. Suspira: — “Caso sério”. A primeira está dizendo: — “Quando respiro...”. Respira fun­do: — “Dói aqui”. Espeta o dedo: — “Aqui”.
E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãe espancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motorista pudesse ouvi-la: — “Espera, espera”. O trocador fica olhando e reclamando: — “Como é, minha tia?”. Lá fui eu ajudá-la. Um outro apareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — “Ai, ai”. Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — “Deus te abençoe, Deus te abençoe!”. O tro­cador deu o sinal, o ônibus partiu. Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outra esquina.
Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — “Será que essa mãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?”. Vamos crer que fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há a imprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, as Forças Armadas etc. etc. E toda essa maravi­lhosa estrutura não faz nada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espante. O bra­sileiro cada vez se espanta menos.
A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: — não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito, apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delas estava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Ago­ra me lembro: — falei, sim, da orelha. Paciência. Lembro-me de que, ao contar a surra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum), pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outra condenasse o rapaz, ela o teria de­fendido, talvez. Talvez, não. Estou certo de que o teria defen­dido.
E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iria para o espelho acusar a própria imagem: — “Bem feito, bem feito!”. Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar ra­zão à surra, existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própria família que atira pela janela todos os seus valo­res. Há poucos dias, um pai amargurado escreveu-me: — “Meu filho sabe mais do que eu! Minha filha sabe mais do que a mãe!”. Porque fez dezoito, ou vinte, ou 23 anos, o sujeito passa a ter a “verdade da idade”, a “razão da idade”, o “direito da idade”, o “poder da idade”, a “virtude da idade”. E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, o político, o psicó­logo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintor Raul Brandão berrava numa galeria de pintura: — “O jovem tem todos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!”.
Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estu­dantes da França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas da fome, furiosas contra a fome. Mas logo se perce­beu que era a antifome. Sim, a antifome que devastava a Fran­ça. E o mundo viu os filhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos. Ninguém entendia nada. Certo pa­risiense, perfeito idiota da objetividade, escreveu: — “A des­graça da França são os franceses”. Outro propôs uma Resistên­cia contra os franceses. Um terceiro queria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França da brutal ocupação francesa.
E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jo­vens, todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles, além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vi­draças? Foram pichar as obras-primas do teatro Odeon. Passa­ram a gilete ou a brocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estupro plástico? Porque os estudantes eram contra a “arte oficial”. Mas fecharam a Bienal, por se tratar de arte mo­derna, capitalista etc. etc. O festival de Cannes foi também fe­chado, a tapa. Alguém que acordasse, de repente, havia de ima­ginar que era uma nova ocupação nazista. Os nazistas nunca se lembraram de humilhar, degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E o curioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram eles a alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.
Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra. Foi um pouco o papel da França ao ser agredida pela própria juven­tude. Lá ninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição da família diante dos seus filhos. Dizia-me, ontem, um padre de passeata: — “A família tem seus dias contados”. Viu a minha perplexidade e perguntou: — “Ou você não percebe que a família é uma instituição falida?”. Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.

[5/8/1968]

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