terça-feira, 3 de março de 2009

O FURIOSO NELSINHO MOTTA

Depois do último Carnaval, passei uma semana escreven­do sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de “Flor de Obsessão”. Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, “Nelson Rodrigues” e, por baixo do nome: — “Flor de Obsessão”. (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: — con­vivo muito bem com as minhas idéias fixas.
E a minha fixação, nos quatro dias de Carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agra­vante: — não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra “pudor” é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: — “supimpa”. Aí está: — supimpa.) Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.
Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás uma meni­na linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem avia­dor, moreno como um galã do neo-realismo italiano. O jato ba­tera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.
Por uma fúnebre coincidência, as câmaras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O ros­to era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma di­mensão miguelangelesca.
Depois do Carnaval, andei tendo sonhos hediondos. E, no pesadelo, era atropelado por milhões de umbigos, por milhões de cicatrizes. Eis o que eu queria dizer: — na série de artigos em torno da festa de nus disse eu o que me parece ser uma ver­dade eterna: — nada mais feio do que a nudez sem amor. O ideal seria que só o bem-amado pudesse ver um decote. Dirá alguém que o decote é tão pouco. Sei que é tão pouco. Mas só o bem-amado devia olhar o decote. Escrevi mais: — como é triste e mesmo vil a nudez que ninguém pediu, que ninguém quis ver e que nenhum desejo explica. A Marilyn Monroe também se des­piu para uma folhinha. Mas teve um preço, um cachê. Era um impudor mercenário. Mas parece mais vil a nudez de graça, a nudez sem gratificação.
Foi mais ou menos isso que escrevi em três ou quatro arti­gos. E, um dia, recebo a carta de uma leitora indignada. Come­çou por me chamar de “velho”. Até aí nada demais, porque sou realmente uma múmia. Mas ela continua e logo percebo que não se trata de uma velhice de idade, mas de espírito. E dizia mais que só um velho podia-se interessar pela nudez feminina. Os jovens tinham mais em que pensar etc. etc. Achei a carta da lei­tora uma delícia rara. Dois ou três dias depois, conversei com um clínico famoso. E ele estava apavorado. Disse-me que nota nas novas gerações um ressentimento contra o sexo, contra o amor e contra a mulher. Isso da parte dos homens. E as meni­nas têm a mesma aridez. Os jovens de ambos os sexos sentem o tédio antes do amor e esquecem antes da posse.
Vejam bem. Se a leitora e o médico têm razão, os únicos homens válidos são os velhinhos nostálgicos e espectrais da por­ta da Colombo. E os moços plásticos, elásticos, ornamentais da praia? Bem. Sempre me pareceu que, aos vinte anos, o sujeito não sabe nem como se diz “bom dia” a uma mulher. Simples­mente não sabe como tratar uma mulher. Mas no passado a vi­talidade o salvava. Vitalidade talvez cega, talvez obtusa, talvez brutal. Mas, repito, essa vitalidade era alguma coisa. E, de re-pente, vêm a leitora e o médico e dizem: — só os velhos ainda se interessam por amor, só os velhos ainda se interessam por sexo.
A princípio, fiquei em pânico. Mais tarde, pensando me­lhor, cuidei que tinha sido um exagero da leitora e do clínico. Não era possível. E, no entanto, vejam vocês: — acabei de ler um prodigioso artigo de Nelsinho Motta. Sim, o escritor, o jor­nalista, o ensaísta, o sociólogo, o letrista, o homem de televi­são. Não sei se vocês o conhecem. Se não conhecem, tentarei descrevê-lo, por dentro e por fora. Fisicamente, é pálido e diá­fano como Werther ou, se preferirem, como Alfredo da Traviata. Não sei se o tal Alfredo tinha costeletas. Mas quero acre­ditar que, de costeletas, o Nelsinho seria o próprio. Ainda no terreno da ópera, lembra também o pajem do Rigoletto. E, por dentro, é de uma fragilidade ideal. Sua estrutura psíquica não resistiria a um sopro de apagar velinha de aniversário.
(Por um lapso indesculpável, eu ia-me esquecendo de um dado fundamental: — nunca foi à praia. No momento em que cada brasileiro é moreno como um havaiano de Hollywood, a palidez do Nelsinho Motta faria o maior sucesso nos velhos fo­lhetins.) E foi essa flor de biscuit que, subitamente, escreveu um artigo feroz. Imaginem um javali com todas as cerdas eriçadas. Assim é Nelsinho Motta na primeira e admirável fúria de sua vida. O pretexto foi a música popular.
O autor fala como jovem e em nome dos jovens. Os idiotas da objetividade diriam que a ira do Nelsinho (só comparável à de Zola) tem motivos menos nobres e estritamente competiti­vos. Mas vejamos. Ele arrasa os compositores que pretendem “uma música pura, romântica, que eleve a alma”; e que que­rem impressionar as meninas (o que é o caso de todos os bra­sileiros vivos e mortos). Diz o caro Nelsinho que essa espécie está-se extinguindo. Com um pouco mais, estaremos todos de­sinteressados de meninas. Essa castração do homem brasileiro chega a ser comovente.
Em tom épico, fala da juventude que lutou nas ruas de Pa­ris. Mas que luta? Contra os paralelepípedos, contra os carros virados? Não houve uma cabeça quebrada, uma fratura, nada. E continua o Nelsinho. Fala nas passeatas brasileiras. Realmen­te, as passeatas! Alguém viu um negro um operário, um roto, um esfarrapado? Mas o autor afirma que as passeatas vão salvar o Brasil. E, súbito, ele cita o Chico Buarque de Holanda e o in­clui na lista dos jovens que não gostam de amor. Mas é falso. O Chico é o anti-Roda viva. A Banda é o anti-Roda viva. Não há autor mais lírico, e que toque mais às meninas, e mais terno, e mais “sentimentalóide”, e mais “desvinculado do mundo em que vivemos”. Aí está: — o vil e canceroso mundo em que vivemos não admite, segundo o Nelsinho, nem amor, nem se­xo, nem mulher e, muito menos, homem.
E mesmo o Nelsinho, que é o próprio Werther. Como ele se explica, como ele se justifica? Mas, de qualquer maneira, acre­dita em passeatas. Na próxima, ponha um negro na marcha; um operário; um esfarrapado; um torcedor do Flamengo; uma criou­la dando o peito seco ao filhinho recém-nascido. Não me co­move a passeata das classes dominantes. É preciso tirar a fome brasileira de sua hedionda solidão.

[1/8/1968]

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