quinta-feira, 5 de março de 2009

SOBRE VAIDADE

Há tempos, contei o caso do ministro que foi, pela primei­ra vez, à televisão. A família tremeu em cima dos sapatos. E não sei se a própria mulher, uma tia, ou uma cunhada, deu a suges­tão espavorida: — “Toma banho! Toma banho!”. E porque não lhe ocorrera a idéia do banho, o ministro julgou-se um venci­do. Imediatamente, a esposa se arremessou. Podia ser banho de chuveiro. Mas, como ele ia falar na tv, a santa senhora achou que devia ser banho de imersão.
Encheu a banheira. Temperou a água. E o banho ministe­rial foi digno de Paulina Bonaparte. Do lado de fora, a mulher comandava: — “Esfrega bem! Esfrega bem!”. Uma tia cochi­chou: — “Debaixo do braço!”. E a mulher mais alto: — “De­baixo do braço, ouviu?”. Súbito, alguém veio dizer à esposa: — “Homem não sabe tomar banho. Não se limpa direito”. Vo­zes a instigavam: — “Vai lá! Vai lá!”. E ela foi. Quando s. exa. saiu, era o membro mais limpo do governo.
E, assim, esfregado pela própria mulher e mais perfumado do que uma noiva, lá se foi o ministro. Ele, só, não. Levava um acompanhamento estarrecedor. Parecia uma passeata de paren­tes. Havia, na família, uma solteirona de García Lorca. Chama­da, não queria ir. Quase a laçaram; e a velha estrábica (era estrá­bica) teve que se incorporar à massa familiar.
O ministro entrou na estação em ânsias, palpitações sufocantes. Não acreditava em nada, era um ateu nato e hereditário. Todavia, na hora de ir para o ar, vira-se para a mulher: — “Reza por mim! Reza por mim!”. E, com uma dispnéia pré-agônica, encaminhou-se para o abismo. Sim, a televisão era, para S. Exa., um abismo voraz e inédito. Na frente das câmaras e dos micro­fones, deixou de ser o poder, o governo, a autoridade. Era o contínuo de si mesmo. Houve um momento em que, em pleno ar, teve sede. Apanhou o copo com as duas mãos. Mas parte da água voltava como uma baba.
Já não me lembro por que é que estou contando tudo isso. Ah, já sei, já sei. Eu queria demonstrar o óbvio, isto é, que a televisão fascina qualquer um. O sujeito pode ser rei, ou rainha, ou anjo, ou santo. Mas atravessa três desertos para entrar no pro­grama do Chacrinha, da Dercy ou da Bibi. Cabe então a per­gunta: — e por que esse deslumbramento?
Vamos lá. Primeiro, porque, normalmente, cada um de nós é um ator sem platéia. Representamos, no máximo, para uma namorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos, meia dúzia de credores. E o sujeito que entra no Chacrinha sai de lá célebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulmi­nante é a maior delícia terrena.
E quem fala para tantos pode, com uma frase, fundar uma religião, com outra frase derrubar um império, com uma ter­ceira frase decapitar várias marias antonietas. De mais a mais, a simples imagem nos confere uma nova dimensão. Pois não há idiotas no vídeo. Lembro-me de um outro ministro. Alguns espíritos, estreitamente positivos, afirmam que é débil mental de babar na gravata. Foi para a televisão e parecia um Disraeli. E De Gaulle, que fez De Gaulle, quando viu a França sob a bru­tal ocupação francesa? Correu à tv e anunciou: — “Eu sou a Revolução!”.
Isso, dito cara a cara, e para meia dúzia, não convence ninguém. Mas uma platéia de 20 milhões não pensa. E não preci­sou polícia, nem exército, nem bazuca. Uma frase bastou. Sem nenhuma repressão sangrenta, o único francês vivo liquidou o que ele próprio chamou de “carnaval”. Baixou sobre a França uma súbita quarta-feira de Cinzas. O que restou de tudo foi a ressaca do caos ululante.
E se alguém disser na televisão que é Joana D’Arc, será Joa­na D’Arc. Portanto, a França e colônias (se sobrou alguma colô­nia), todo mundo acreditou que De Gaulle era a própria Revo­lução de esporas e penacho. Aqui mesmo tivemos o encontro de Carlos Lacerda e d. Hélder. Iam fazer um diálogo. Mas o diá­logo foi monólogo. Só Lacerda falou. O arcebispo disse um “oba” à entrada e um “até logo” à saída. Por que tal silêncio? Por dois motivos: — primeiro, porque d. Hélder só se interessa Por d. Hélder; segundo, porque é um arcebispo de tv, um santo de tv. Ele próprio o disse: — “Não sou um Guevara de salão”. É um Guevara de tv. Carlos Lacerda era um único e escasso es­pectador. D. Hélder só falaria para milhões de carlos lacerdas.
Eis o problema: — ninguém quer mais posar para meia dú­zia. O nosso gesto, a nossa ênfase, a nossa careta pedem a gran­de comunicação, a formidável audiência. Aí está a minha clas­se. No passado, era-se atriz, ator, diretor para uma platéia de poucos. Mas hoje o palco passou a ser a pior forma de solidão. Diante dos 150 gatos-pingados de cada sessão, a Duse ou o Zaconi sente-se um Robinson Crusoe sem radinho de pilha. Insta­lou-se em cada um de nós, do teatro, a utopia das platéias fan­tásticas. Disse-me o dramaturgo Plínio Marcos que queria repre­sentar e ser representado no ex-Maracanã, hoje Mario Filho, para uma platéia de Vasco x Flamengo, de Santos x Corinthians. Cada um de nós queria ser um Santos x Corinthians, um Vas­co x Flamengo. Ou ainda: — qualquer um de nós gostaria de ser, na pior das hipóteses, uma preliminar de Fla-Flu.
Foi a televisão, claro, que nos deu essa obsessão numérica das grandes massas. Volto ao teatro. Lembro-me de um ator que me dizia, patético: — “Eu queria morrer no palco”. Um outro, mais radical, além de querer morrer no palco, gostaria de ter nascido no palco. E o palco seria, duplamente, berço e túmulo. Hoje, este último gostaria de nascer e morrer na tv, para mi­lhões. Por que todos gostamos de fazer passeata?
Pode parecer que temos altíssimas e sutilíssimas razões políticas, ideológicas, revolucionárias etc. etc. Na verdade, e até prova em contrário, o que há é a vontade que cada qual tem de ampliar a sua platéia. Reparem como tudo é pretexto para passeata. Há uma greve de veterinários? A classe sai à rua. Mas como, se ela nunca tratou de cachorro? Não importam os cães, sejam eles galgos ou vira-latas. O que interessa é a conquista de uma nova e incalculável platéia. Outrora, as sacadas não iam ao teatro, os automóveis não gostavam de teatro, os edifícios abo­minavam o teatro. E a passeata incorpora à sua platéia ideal mi­lhares de carros, e prédios, e esquinas, e avenidas etc. etc. Dirá alguém que é um público sem bilheteria. E pergunto: — e a vai­dade? Hoje, há poetas, sociólogos, arquitetos, protéticos, car­diologistas que pagariam, do próprio bolso, para entrar na pas­seata.
Eu disse “vaidade”. Aí está a palavra que explica tudo. O que nos induz à passeata é, digamos, uma vaidade de leitão assado. Se não entenderam a metáfora, tentarei justificá-la. Ima­ginem um salão imenso. Banquete. Quinhentas pessoas senta­das, entre casacas e decotes. E, lá do fundo, um garçom traz na bandeja um leitão. Levado na bandeja em desfile, o leitão há de sentir uma vaidade total. Assim também o artista, o litera­to, o cineasta ou o padre de passeata. O sujeito parece desfilar triunfalmente, numa bandeja imaginária, e de maçã na boca, co­mo o leitão assado.
[6/8/1968]

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