quinta-feira, 26 de março de 2009

O MASSACRE DA “SABIÁ”

Não há brasileiro, vivo ou morto, que não tenha uma vizi­nha gorda e, além de gorda, patusca como uma viúva machadiana. Dirão os idiotas da objetividade que vizinha é a que mo­ra ao lado, ou defronte, ou ali na esquina ou, ainda, na mesma rua. O caso não me parece tão simples. O que eu chamo de vi­zinha é, antes de mais nada, um certo tipo físico, uma certa e generosa adiposidade. Dizia-me um amigo, a propósito de não sei de quem: — “Gorda como uma vizinha”. Aí está dito tudo. E se tiver varizes, melhor. Ah, esquecia-me das brotoejas. É preciso que desponte, no seu decote, uma constelação de bro­toejas.
Assim é, fisicamente, a vizinha. Do ponto de vista de cará­ter, sentimentos e modos tem de ser patusca. Imaginem uma víbora gaiata — é a vizinha, como a imaginava o nosso Macha­do de Assis. Se, por acaso, mora ao lado uma senhora esguia, de lindas maneiras e nobres sentimentos — estejamos certos de um equívoco, de uma fraude ou de uma confusão de endereço. Reside a dois passos, mas é a falsa vizinha, a antivizinha, sem nada de machadiano. Fiz esta breve introdução para concluir: — tenho, na minha rua, uma senhora que é a vizinha perfeita, irretocável.
Está sempre na janela. Eis aí um costume típico. Como se sabe, a janela foi a televisão das gerações passadas. Hoje, tudo mudou. Há pessoas que passam anos e não usam a janela nem para cuspir. Resumindo: — a janela só existe e sobrevive nas letras do Chico Buarque de Holanda. Mas onde é que eu esta­va? Ah, na vizinha gorda, a quem chamam de “Moby Dick”, a baleia. E a santa senhora, instalada no seu primeiro andar, toma conta de tudo e de todos. Vê quem chega, quem parte, quem namora e quem prevarica.
Ontem, ao sair de casa, quem vejo eu? A vizinha. Quase atravessei a rua. Mas já a vizinha crispava no meu braço a sua mão pequena e voraz de gorda. Não tive outro remédio senão parar. Agrediu-me com a pergunta: — “O que me diz do Festi­val?”. Não me lembro se disse “Gostei” ou “Não gostei”. Ago­ra me lembro. Minha resposta foi exatamente esta: — “Mais ou menos”. Só. Por coincidência, também ela achara “mais ou me­nos”. Vendo, ali, uma similitude de gosto, de sentimentos, vi­brou a vizinha. Conversamos uns quinze minutos. E, por fim, quando me despedi, ela fez mistério, fez suspense. Disse, sem desfitar-me: — “Nada como um dia depois do outro”.
Aquilo ficou na minha cabeça. “Nada como um dia depois do outro.” Só uma vizinha gorda diria isso. Sim, a frase era um achado de vizinha gorda, patusca e cheia de varizes. Mas como ia dizendo: — despedi-me e, em seguida, apanhei o táxi. Vim para a cidade ressoante do “Nada como um dia depois do ou­tro”. E, então, pensei no Festival. Em São Paulo, quando se es­colheu a música paulista, os fanáticos de Vandré promoviam uma apoteose para o seu ídolo e, ao mesmo tempo, massacravam a música de Caetano Veloso. E não só a massacravam, como tam­bém massacravam o autor.
Se vocês assistiram ao teipe da Paulista, hão de se lembrar. Pela primeira vez viu-se uma pobre canção linchada. A canção, digo eu, e respectivo autor. E mais: — enquanto Caetano Velo­so queria cantar, a platéia — sapateando como uma espanhola — fazia um coro feroz, unânime e obsceno. Mas o artista deu-lhe o bravo troco. Chamou os jovens ululantes de “imbecis”, “analfabetos”, “débeis mentais” etc. etc. E disse tanto que a obscenidade emudeceu. O comportamento de tal platéia — e toda ela “festiva” — foi de uma indignidade inédita. Vejam co­mo cabe, aqui, o “Nada como um dia depois do outro” da mi­nha vizinha. No Rio, novamente, apoteose para Vandré e vaia para “Sabiá”. Em São Paulo, porém, o “Proibido” foi realmen­te proibido pela platéia, e saiu do Festival. Aqui, o vaiadíssimo “Sabiá” ganhou e vai representar o Brasil.
Mas o que ainda me assombra é o poder de promoção da “festiva”. O povo acha graça e vamos e venhamos: — o sim­ples nome de “festiva” é um apelo ao ridículo. Realmente, há o ridículo, sem prejuízo, todavia, do gênio promocional das esquerdas. O leitor não tem noção do que sejam os bastidores da glória, do sucesso, da consagração. Hoje, só se é poeta, ro­mancista, sociólogo, crítico, cineasta, se as esquerdas o permi­tirem. Cabe então a pergunta: — e por quê? Vejamos.
Porque a “festiva” infiltrou-se nas redações, nas rádios, nas tvs. Há um escritor que não escreve, não lê, não pensa? Outro que é cineasta inédito? E outro ainda um romancista que não fez, nem fará jamais um romance? Como desfilam em passeatas e xingam os Estados Unidos — são grandes sociólogos, cineas­tas, romancistas e poetas. E há o caso de Gilberto Freyre.
As esquerdas o abominam. Por que, não se sabe, ou, por outra, sabe-se perfeitamente. Gilberto Freyre é um homem li­vre. Pensa, vejam vocês e pasmem: — pensa. Pois bem. Até ou­tro dia era, na vida intelectual do Brasil, uma presença enorme, obrigatória, obsessiva. Lembro-me de que, certa vez, as gran­des figuras literárias do Brasil propunham que ele fosse o nosso candidato ao prêmio Nobel. E, súbito, desaba sobre o seu no­me e sua obra um vil silêncio. É solidamente ignorado pelos nos­sos jornais. Não há mais notícia, nem reportagem, nem crôni­ca, nem artigo sobre Gilberto Freyre. Acabou? Morreu? Deixou de pensar, ler, escrever? Não, mil vezes não.
Simplesmente, não aceitou a pressão das esquerdas. E estas, que têm a posse de todos os meios de promoção, não fa­lam em Gilberto Freyre, negam-lhe uma notícia de duas linhas ou uma vaga referência. Bem. Volto ao Festival. Vejam vocês: — a “festiva”, com o seu horror ao risco, não deu um tiro em 31 de março, não matou um passarinho em 1º de abril. E nem vai mover uma palha ou tirar uma cadeira do lugar. Mas só se tem talento com a sua licença.
E, domingo, no Maracanãzinho, as esquerdas caíram do ca­valo. Esperavam o primeiro prêmio para Vandré e quem ganhou foi “Sabiá”. Entre parênteses, não nego o talento de Vandré. Sua “Marselhesa” nada tem de “Marselhesa” e, pelo contrário, soa como berceuse e o próprio autor a canta como tal. Mas, berceuse ou “Marselhesa”, há talento. E o resultado doeu na “fes­tiva”. Logo, com aquela sua coragem sem risco, saiu pelas re­dações, rádios e tvs. O nosso Vandré teve uma imprensa que nem Rui, nem o barão do Rio Branco, nem Santos Dumont me­receram. Mas era pouco. A glória impressa era pouco.
E que fizeram elas, as esquerdas? Vejam que golpe bem imaginado. Na terça-feira, em jornais, rádios e tvs, largaram a bomba: — Tom e Chico iam renunciar. Nada descreve o meu espanto. O prêmio, se não me engano, é de 25 milhões. Vinte e cinco milhões — o brasileiro não é assim. Mesmo o nosso mi­lionário não é assim. Um dia, o Walther Moreira Salles ganhou um prêmio menor no “Seu Talão”. Pois meteu-se na fila e foi buscar o dinheiro. Por que, e a troco de que, Tom e Chico iam enfiar no bolso de Vandré os 25 milhões? O Chico não está pre­sente. E, se o Tom aceitasse a coação sentimental e realmente idiota, estaria merecendo um urgente tratamento psiquiátrico. Sim, e nós o amarraríamos num pé de mesa e lhe daríamos água numa cuia de queijo Palmira.
[3/10/1968]

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