terça-feira, 7 de abril de 2009

Capítulo 1 - A Menina sem Estrela

Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco. Ve­jam vocês: eu nascia na rua Dr. João Ramos (Capunga) e, ao mes­mo tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios nas esquinas e botecos de Paris. Era a espiã de um seio só e não sabia que ia ser fuzilada. Que fazia ela, e que fazia o marechal Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle époque já trazia no ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que “espiã de um seio só”? Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja uma doce, uma compassiva fantasia. Seja como for, o seio solitário é, a um só tempo, absurdamente triste e al­tamente promocional.
Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me interessa. Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar, domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade, a tensão, a magia da presença físi­ca. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu quero dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do fu­turo e de várias alucinações.
Imaginem vocês que tive ontem, na esquina de São José com Avenida, uma experiência, e grave. Antes de prosseguir, porém, devo explicar que, para mim, nada é intranscendente. Pode ser um fato de infinita, exemplar modéstia. Digamos que a nossa galinha pule a cerca do vizinho. Pode haver uma peri­pécia de mais delicada humildade? Não. E, todavia, esse inci­dente, em que pese a sua aparente irrelevância, tem um toque de Graça e de Mistério. Se bem me lembro, é de Bernanos um romance que termina assim: — “Tudo é Graça”.
O que foi dito acima tem a intenção de valorizar e dramati­zar a tal experiência de ontem. Vamos ao fato: todos os dias, almoço com minha mãe, nas Laranjeiras. Somos muitos e, por isso, a nossa mesa é numerosa e cálida como a da Ceia. É curio­so! Depois de velho, dei para chamar minha mãe de “madre”, “madre mia”. E aqui confesso: — vou lá buscar a sua compai­xão. Ela tem pena de mim, sempre teve. Fosse eu um Walther Moreira Salles e minha mãe teria pena de me ver, boiando num lago de milhões como uma vitória-régia.
Pois bem, venho do almoço e salto do táxi na esquina refe­rida. Por toda a cidade, um calor de rachar catedrais. Fecha o sinal e paro em cima do meio-fio. De repente, ouço aquela voz. Era um camelô, como há milhares e, eu quase dizia, como há milhões. Viro-me e fico olhando o sujeito. O camelô tem de ser um extrovertido ululante. E aquele estava, ali, virando a alma pelo avesso. Passa todo mundo de cara amarrada. O brasileiro é um furioso nato. O que se vê, na rua, são indignados de am­bos os sexos.
Pois, enquanto os outros passavam exalando uma ira mis­teriosa, o camelô só faltava virar cambalhotas de alegria total. Não tem um dente, ou, melhor dizendo, tem uma antologia de focos dentários. O pior vem agora.
O sujeito está berrando:
— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!
E erguia um folheto, só faltava esfregar o folheto na cara da pátria. Todavia, não me espanto, ninguém se espanta. As pes­soas passam e nem olham. Há qualquer coisa de vacum no ler­do escoamento da multidão. O camelô continua empunhando o folheto como um estandarte dionisíaco:
— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!
Esse sinal não abre? Abriu. Lá vou eu, de roldão. Mas a Ave­nida, da Praça Mauá ao obelisco, está ressoante do berro imortal:
— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!
Um turista que por ali passasse havia de anotar no seu ca­derninho: “O Brasil acaba de promulgar a sua nova Prostituição”. Para mim, era uma experiência inédita: — pela primeira vez, via uma prostituição promovida como sabonete, coca-cola ou grapete. Já na outra calçada, estaco. O que eu reclamava de mim mesmo era todo o espanto que não sentia. Sim, eu devia estar espantado, todos deviam estar espantados. De outra cal­çada, ainda vejo o camelô com sua euforia absurda. E o povo passando. Que nem todos parassem, vá lá. Mas alguém, alguém devia parar. Um funcionário, um soldado, um marinheiro ou um velhinho de camisa fina e imaculada. Mas todos seguiam seu caminho, inclusive uma mulata de Gauguin. Portanto, eu e os outros que passavam éramos também irreais, tão irreais como o camelô.
Quando o sinal abre para os pedestres, decido: — “Vou vol­tar”. E volto. O que me põe doente é a falta de espanto. Preci­so me espantar com a maior urgência. Já atravessei o cruzamento e estou, de novo, na esquina do camelô, junto ao próprio. Pos­so apalpá-lo, posso farejá-lo. Talvez compre o folheto da nova Prostituição do Brasil.
Depois de cuspir para trás, por cima do próprio ombro, o homem recomeça:
— A nova Constituição do Brasil! A nova Constituição do Brasil!
Só então percebo o monstruoso engano auditivo. Onde é que meus ouvidos estavam com a cabeça? Ah, uma incorreção acústica pode levar o sujeito a sair por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas.
Por outro lado, também o camelô perdera a sua euforia brutal. Era agora um vago pobre-diabo, igual aos outros pobres-diabos que florescem em todas as esquinas da pátria. Sua depressão era bem irmã da minha, da nossa. Estava mais desdentado do que nunca. E, então, larguei tudo e vim-me embora. Pouco depois, entro numa leiteria (o certo é “leitaria”, mas prefiro o errado). Trato minha úlcera a pires de leite como se ela fosse uma gata de luxo.
Tomando meu leite, faço as minhas reflexões de leiteria. Sem querer, e por causa de um engano acústico, eu descobrira o seguinte, dois pontos: — o que nos falta é o que chamaria de “espanto político”. Aqui, as coisas espantosas deixaram de espantar. Se um camelô brotasse de uma alucinação, invadisse a vida real e berrasse a “nova Prostituição do Brasil” — nin­guém cairia ferido de assombro.
Vejamos outra hipótese. Se baixassem um decreto mandan­do a gente andar de quatro — qual seria a nossa reação? Nenhu­ma. Exatamente: — nenhuma. E ninguém se lembraria de per­guntar, simplesmente perguntar. — “Por que andar de quatro?”. Muito pelo contrário. Cada um de nós trataria de espichar as orelhas, de alongar a cauda e ferrar o sapato. No primeiro desfi­le cívico, o brasileiro estaria trotando na Presidente Vargas, solidamente montado por um Dragão de Pedro Américo. E seria lindo toda uma nação a modular sentidos relinchos e a escoucear em todas as direções.
Mas como ia dizendo: — nasci em 1912. E, por um momen­to, me inclino sobre a belle époque, tão defunta como suas plu­mas e lantejoulas fenecidas e seus nostálgicos espartilhos.

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