Em janeiro de 1967, Nelson Rodrigues estava a caminho dos 55 anos e não se sentia mais jovem a cada dia. Seu romance O casamento, recém-lançado, fora proibido pelo ministro da Justiça do governo Castello Branco, Carlos Medeiros Silva. A acusação era a de “torpeza das cenas descritas”, “linguagem indecorosa” e “atentar contra a organização da família”. Os exemplares foram varridos das livrarias pela Polícia Federal. Alguns intelectuais protestaram e aproveitaram para atacar o sinistro Carlos Medeiros. Mas, num editorial de primeira página, o próprio jornal de Nelson, O Globo — onde ele escrevia a coluna diária “À sombra das chuteiras imortais” —, defendeu o ministro e a proibição.
Nelson ficou ressentido com o jornal e quis sair. Mas deixar O Globo significava também deixar a tv Globo, em cujos programas fazia aparições diárias e semanais. E era com o dinheiro da televisão que ele pagava o aluguel e o dispendioso tratamento médico de Daniela (a “menina sem estrela”), a filha que tivera com Lúcia, sua nova mulher. Daniela nascera de um parto dramático e era cega. Foi então que o jornalista Francisco Pedro do Coutto, seu amigo, sondou-o: por que ele não levava “À sombra das chuteiras imortais” para o Correio da Manhã?
Coutto era editorialista do Correio. Nelson gostou da idéia, mas como resolver o problema da tv? O convite oficial e a fórmula conciliatória partiram de Newton Rodrigues (sem parentesco com Nelson), redator-chefe do Correio: não precisaria deixar a TV e, se quisesse, poderia até continuar com “As chuteiras” em O Globo. O que o Correio da Manhã queria dele eram as “Memórias de Nelson Rodrigues”.
Nelson topou e, graças a esse sortilégio de fatores, escreveu, de 18 de fevereiro a 31 de maio daquele ano, a sua mais extraordinária coleção de crônicas: sua infância na rua Alegre, sua iniciação sexual, a morte do irmão Roberto, o empastelamento da Crítica, a tuberculose em Campos do Jordão, a estréia de Vestido de noiva. Uma “memória” por dia, todos os dias — com a interrupção de uma semana, mal a série começara: quando uma chuva forte no Rio provocou o desabamento do edifício em Laranjeiras onde morava seu irmão Paulo, matando-o e à sua família. Se os leitores do Correio da Manhã já acompanhavam arrebatados as “memórias” de Nelson, a intervenção brutal da realidade emprestou ainda mais paixão e compaixão ao que ele vinha escrevendo.
Pelo acordo com o jornal, Nelson viria contar suas reminiscências, mas, querendo, poderia também misturá-las com o presente e — mais importante — com liberdade absoluta. E ele usou essa liberdade. Na primeira crônica, atacou finamente o ministro da Justiça que lhe proibira O casamento e que fora o relator da Constituição outorgada em 1967 (que Nelson chamou de “a nova Prostituição do Brasil”). Em outra crônica, não poupou o poeta Carlos Drummond de Andrade, também cronista do Correio da Manhã, por sua “aridez de três desertos” ao comentar o desabamento de Laranjeiras. E, por fim — para Nelson, uma doce vingança —, fez uma longa e comovida apologia de seu pai, o jornalista Mário Rodrigues, nas páginas do próprio jornal que o declarara o seu principal inimigo na distante década de 20 e que nunca o perdoara.
Em fins de maio, Nelson e o Correio da Manhã se desentenderam por questões financeiras. Enquanto não chegavam a um acordo, a série foi interrompida, mas o jornal, com planos de aventurar-se no mercado editorial, iniciou suas edições com a publicação em livro das Memórias de Nelson Rodrigues. O primeiro volume, subtitulado “A menina sem estrela”, continha as primeiras 39 “memórias” e foi lançado numa edição de, presume-se, 2 mil exemplares. As 41 “memórias” restantes ficariam para um segundo volume — que não chegou a sair, porque não houve acordo entre Nelson e o Correio da Manhã. O jornal, por sua vez, perseguido pelos militares, entraria na crise financeira que levaria ao seu desaparecimento poucos anos depois.
A edição original das Memórias tornou-se uma raridade bibliográfica. Seus poucos exemplares foram avaramente guardados pelos que os compraram e nunca apareceram nos sebos De todos os livros de Nelson, é o mais precioso item de colecionador. Alguns dos principais estudiosos de Nelson, como os críticos Sábato Magaldi e José Lino Grünewald (além deste organizador), consideram-no talvez a maior coisa que Nelson escreveu. E o capítulo 10, em que Nelson conta o drama de Daniela, foi classificado por Otto Lara Resende como “uma das mais belas páginas da língua portuguesa”. Mas, neste livro, há muitos outros capítulos tão belos quanto.
Pela primeira vez, as oitenta “memórias” que Nelson publicou no Correio da Manhã saem completas e numa única edição, na ordem em que foram publicadas no jornal.
Logo, não se trata de uma ressurreição — a vida de A menina sem estrela só agora começa.
R.C.
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