quarta-feira, 8 de abril de 2009

Capítulo 2 - A Menina sem Estrela

Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pi­tanga. Caju de praia e pitanga brava. Hoje, tenho 54 anos bem sofridos e bem suados (confesso minha idade com um cordial descaro, porque, ao contrário do Tristão de Athayde, não odeio a velhice). Mas como ia dizendo: — ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos re­gressivos e fatais.
E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambu­co. Mas não era mais Capunga e sim Olinda. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso me deu a minha primeira relação com o universo. Ali, eu começava a existir. Ainda não vira um rosto, um olho, uma flor. Nada sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, súbito, as coisas nasciam, e eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro.
Que idade teria eu? Eis o que me pergunto: — que idade teria eu? Um ano, um ano e pouco, sei lá. Ou menos, talvez me­nos. Minha família morava diante do mar. Mas o mar antes de ser paisagem e som, antes de ser concha, antes de ser espuma — o mar foi cheiro. Há ainda um cavalo na minha infância pro­funda. Mas também o cavalo foi cheiro. Antes de ser uma figura plástica, elástica, com espuma nas ventas — o cavalo foi aroma como o mar.
1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um mínimo de vida e de gente. Eu me lembro de pouquíssi­mas pessoas. Por exemplo: — vejo uma imagem feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a ver com a vida real. Va­gavam, diáfanos, por entre as mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.
Falei do mar e volto a ele. Tenho umas poucas obsessões que cultivo, com paciência e amor. Uma delas é o mar. Qual­quer praia vagabunda, mesmo a de Ramos, tem para mim um apelo mortal. Às vezes, penso que já morri afogado em vidas passadas ou morrerei afogado em vidas futuras. Gosto até de cheiro de peixe podre.
Em 1914, houve o incidente de Sarajevo. Caçaram o arquiduque a tiros, bombas. Meu pai soube, e minha mãe, e meus tios, e as visitas. Mas, na hora do atentado, eu não sabia que o arquiduque, já ferido de morte, soluçava para a mulher: — “Vi­ve para os nossos filhos!”. Era um defunto falando para uma defunta. Aquele homem assumia, ali, a sua plena e inefável miserabilidade. Deixava de ser um uniforme, um penacho, um par de botas. As medalhas escorriam sobre as tripas à mostra. E as esporas triunfais estavam agora geladas. Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo — o homem tem um olhar sú­plice e insuportável de criança batida. Não, não, um olhar de contínuo. Sempre imagino que o arquiduque austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o últimos dos contínuos.
Era a guerra. Um ano depois, nascia mais um, lá em casa. Era o sexto filho. Meu pai já espalhara por toda Recife: — “Se for menino, vai se chamar Joffre”. E veio um menino, de cabe­lo de fogo. Esse irmão, que se uniria a mim como um gêmeo, ia morrer, aos 21 anos, tuberculoso. Depois da Revolução de 30, e até 35, eu e toda a minha família conhecemos uma misé­ria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari. Ainda ago­ra, quando me lembro desse período, tenho vontade — vonta­de mesmo — de me sentar no meio-fio e começar a chorar. Eu e meu irmão Joffre passamos fome e foi a fome que estourou os nossos pulmões. Mas não quero misturar datas e contarei tu­do isso, a seu tempo. (Naquela época, os jornais davam à tuber­culose o nome imaculado de “peste branca”. Por uma associação meio idiota, eu me lembro de Moby Dick, a “baleia bran­ca”. Mas estou divagando, e desculpem.)
Voltemos à guerra, isto é, à Primeira Grande Guerra. Meu pai embarcou para o Rio em 1915 (jornalista de combate, com tremendo potencial de ira, ele sempre imaginou que ia morrer assassinado). Pernambuco tornara-se pequeno para a sua ambi­ção jornalística. Largou emprego, largou tudo e disse à minha mãe: — “Você me espera. Se arranjar emprego, mando buscar você. Se não arranjar, volto”. Partiu. Meu pai era gago e daí, talvez, a ternura que eu tenho por todos os gagos. Que figura doce era meu pai e capaz de cóleras tamanhas. Cólera contra os outros, contra o mundo, mas trêmulo de ternura para a mu­lher e para os filhos. Morreu aos 44 anos de idade e jamais me deu um vago e merecido cascudo. Na hora, porém, do revide polêmico, era um Zola a decompor o exército francês. Mas meu pai não era homem de passar muito tempo longe de minha mãe.
No dia em que desembarcou no Rio, deu-lhe uma santa e provinciana pusilanimidade. Sua vontade foi voltar, correndo. O que ele não sabia, nem podia imaginar, é que minha mãe es­tava empenhando jóias, o diabo. Meu tio Augusto protestou: — “Não faça isso. É loucura!”. Ela não aceitou nenhum argumen­to, nenhum raciocínio: — “Vou porque vou, vou mesmo”. Lin­da, minha mãe. Tenho retratos seus da mocidade e posso repe­tir: — linda, minha mãe. Um dia, meu pai recebe o telegrama: “Embarco hoje, navio tal. Beijos”. E lá ficou ele, como uma barata tonta, lendo e relendo aquilo. Vinham minha mãe e seis fi­lhos, o último de colo. Esse batalhão de crianças ia inundar o Rio de Janeiro. Diga-se de passagem que, há muito tempo, mi­nha mãe vinha martelando meu pai: — “Vamos para o Rio. Vo­cê tem que ir para o Rio”.
Uma coisa é certa: — meu pai só ficou por causa de minha mãe. E quando entramos no navio, a Europa continuava mor­rendo e matando. Segundo dizia o Eu Sei Tudo, os alemães ar­rancavam o olho dos prisioneiros com o dedo em gancho. Só os alemães estupravam. Só os alemães espetavam criancinhas na ponta das baionetas. Durante a viagem, meus irmãos mais velhos, Milton e Roberto, estavam eufóricos. A campanha sub­marina alemã espalhava o terror por todos os mares. Meus ir­mãos queriam ser torpedeados e, se morrêssemos todos, seria ótimo, ótimo. Quanto a mim, não me lembro de nada, ou por outra: — o que me ficou do navio foi a lembrança de uma deli­cada escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo. Finalmente, chegamos. No cais, estavam meu pai e Olegário Mariano, o poeta.
Eu só imagino a pungência, a plangência da cena. Minha mãe descendo a escadinha, com a filharada atrás, e sem um tos­tão (o dinheiro das jóias fora todo gasto nas passagens e em pou­cas gorjetas de bordo); e meu pai, sem emprego, rigorosamen­te sem emprego, ou melhor: — meu pai arranjara um emprego e fora despedido. Saímos dali e fomos — meus pais com a filha­rada — para a casa de Olegário. Lá passamos não sei se vinte dias, um mês. Mas falei em Olegário e preciso contar um episó­dio que ocorreria trinta e poucos anos mais tarde. Tivemos um bate-boca, pelo telefone, de uma espantosa violência. Houve, de parte a parte, os insultos mais pesados. Olegário berrava: — “Eu te matei a fome! Eu te matei a fome!”.

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