quinta-feira, 16 de abril de 2009

Capítulo 10 - A Menina sem Estrela

Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apareceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Alegre, havia sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena, dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá adiante, na primeira esquina.
A menina sumiu também, como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, rua Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer: — nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um único e escasso padre. Havia uma igreja — e ainda há — na esquina de Barão de Mesquita com Major Ávila. Lembro-me da igreja, dos santos e não dos padres.
Fiz o parêntese e volto à rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete, botinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci cegos portugueses. Brasileiro, nenhum.
Fiquei ali, na esquina, em adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bolso, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E, então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha vontade era morrer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés. Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — “O que é que você comeu?”. Comecei a chorar, perdido, perdido.
E, de repente, uma certeza se cravou em mim: — eu ia ficar cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na espanhola e antes da espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso repetir, sem medo da ênfase: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões, sempre as tive. Mas essa nunca me abandonou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.
Quando minha família já ia sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos furados. E me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — “Naquela casa, mora um menino cego”.
Mas quando mudamos para a Tijuca, já não estava tão certo se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe, ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão, alguém ficaria cego, alguém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um menino de seis anos.
Até os dez anos, doze, não tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade. Adulto, eu não fazia mistério: — “Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça”. Não “uma bala na cabeça”; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio estourou o coração mas preservou sabiamente a cara para a História e para a lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy, não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua, nem cédula, nem selo substitui o último rosto, o rosto morto.
Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, numa de nossas conversas, falei-lhe assim: — “Desde criança, tenho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz a pausa e completei: — “...eu meteria uma bala na cabeça”. Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terrorismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fundo, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja: — “Mesmo cego, eu viveria se você me amasse”. Por outro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infantil. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma graça de Deus.
Mas estas notas não estariam completas, se eu não lhes acrescentasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom. Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: — “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. E dizia: — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem sabe o que é amar”. As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: — “Nem a morte é a separação”. Ela concordou que nada é a separação.
Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima.
“Se for menina, o nome é Daniela”, disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Casa de Saúde São José. Parto prematuro. Minha mulher chega com dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr. Marcelo Garcia e dr. Silva já estavam lá. Foi uma correria de médicos, enfermeiras, irmãs. Dr. Waldyr Tostes ia fazer o parto.
Naquela noite, pensei muito no staretz Zózimo. Sim, na sua bondade absurda, senil e terrível do personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr. Marcelo Garcia era o staretz, e o dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr. Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo aconteceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não queria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo para salvar aquele sopro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã, desesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Lima, dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a morte. Mudaram o sangue da garotinha. E ela sobreviveu.
Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por d. Lidinha. Voltou chorando, e dilacerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — “O senhor é o avô?”. Respondi, vermelhíssimo: — “Mais ou menos”. Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para casa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.
Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, descemos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a TV Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

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