sexta-feira, 17 de abril de 2009

Capítulo 11 - A Menina sem Estrela

Já contei o pedido que me fizeram na igreja. Depois da mis­sa, uma senhora veio me dar os pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila. E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava na minha cabeça. Não escrever mais so­bre velórios, nunca mais.
Mas o que a senhora pedia era uma rigorosa impossibilida­de. As nossas lembranças estão debruçadas sobre velórios e so­bre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: — o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia fabulosa.
Falarei também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Es­se Carnaval iria desfigurar a cidade, o seu povo, influir em nos­sos costumes, sentimentos, idéias, valores. Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho, o oculista que examinara os seus olhos.
Ah, me lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos entrando em General Osó­rio; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua compaixão não confessa, apenas insinua­da. Minha vontade foi fazer-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.
Vou dizer a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho. Odiei o oculista que não acre­ditava em milagre.
Ele fora à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase, quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse nada, nem ele mentiu.
Deixou-me na porta da tv Rio. Eu estava tenso, mas cal­mo. Apertei-lhe a mão, agradeci a carona. E foi só. Mas mi­nha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.
Eles diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais. Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo, menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra: — já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”.
No dia seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D. Lidinha o chamara. Nos braços da mãe, Da­niela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar. Disse a sua verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”. Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando se despediu, me precipitei: — “Vou com o senhor”.
Ainda no elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo que o senhor disse é fato? Pode falar, doutor, não me esconda nada”. E repeti: — “Quero a ver­dade e nada mais”. Foi taxativo: — “É isso mesmo. Eu acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de luz.
Hoje, minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos. São de um azul doce, triste e diáfano. Ain­da não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que, por um momento, fui colhido por um surto de ódio tremendo.
Aqui, deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo como aque­le menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete, os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na es­panhola.
Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O veló­rio seria um luxo insuportável para os outros defuntos.
Era em 1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes, inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa, suas varandas pen­dem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o gran­de mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão ofendido.
Não, não. Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em 1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo: — du­rante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.

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