sábado, 18 de abril de 2009

Capítulo 12 - A Menina sem Estrela

Escrevi, certa vez, uma crônica meio cruel, e da qual me arrependi. Dizia eu que não há ninguém mais narcisista do que o defunto. Ele está sempre bem posto; é solene, hierático, co­mo um mordomo de filme policial inglês. E me lembro que, na ocasião, contei um episódio de rara impiedade.
Eis o fato: — pouco antes, morrera um pastor protestante do meu bairro. Residia a duas quadras lá de casa. De noite, des­ci do bonde e passei pela sua porta. Seria deselegante (vá lá o deselegante) não entrar. Tomei coragem e fui cumprimentar a viúva e demais parentes. E comigo entrou um bêbado, vejam vocês. O sujeito não conhecia ninguém, ali. Mas vira o ajunta­mento e resolvera espiar. E, então, aconteceu esta coisa inédita e abominável: — ao ver o defunto de gravatinha-borboleta, o pau-d’água começou a rir e continuou rindo, num crescendo pavoroso.
Suas gargalhadas iam de uma esquina a outra e atravessa­vam a noite. Imediatamente, cães da vizinhança responderam. E esse alarido canino propagou-se de quintal em quintal, acor­dando os galos, que, por sua vez, começaram a cantar fora de hora. Nos terrenos baldios, faunos e vampiros também esganiçavam o riso torpe. E só o morto, com sua gravatinha-borboleta, permaneceu incomovível. O defunto não alterou, em nada, a sua correção atroz de mordomo de filme policial.
Contei a fábula para chegar à espanhola. Claro que, em 1918, isto aqui era um outro Rio, o Rio dos lampiões, dos bon­des e dos enterros residenciais. Se não existiam mais as carrua­gens de Dumas pai, ainda se podia passear em tílburis machadianos. Botafogo era Machado de Assis puro.
E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. Na fábula aci­ma, vimos que o defunto no seu narcisismo obsessivo foi ao requinte da gravatinha-borboleta. Mas a espanhola não fazia ne­nhuma concessão à vaidade dos mortos. E o apavorante eram a solidão, o abandono e, sobretudo, a humilhação do cadáver.
Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: — na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos pa­rentes, amigos e desafetos. Na espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.
O sujeito morria sem vela. Nós sabemos o que é e como é o brasileiro. Acontece, aqui, uma coisa misteriosíssima e lin­da. Se o sujeito morre na rua, atropelado ou por motivo outro qualquer, surge, instantaneamente, uma vela ao seu lado. É au­tomático. Não importa que seja na Presidente Vargas, no Man­gue, na avenida Brasil ou num descampado da Boca do Mato. Ninguém sabe, e não saberá jamais quem pôs a vela, e que fós­foro a acendeu. A chama trêmula, que nenhum vento apaga, tor­na a morte mais amiga, mais compadecida e mais feérica.
Pois essa estrela dos atropelados, essa estrela de esquina, de meio-fio, de asfalto, não ardeu pelos mortos da espanhola. Eu, da minha janela, espiava os caminhões passando. E não en­tendia mais nada. Antes da gripe, achava a morte rigorosamen­te linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dou­rados, e pelas alças de prata. Lembro-me de que, na primeira morte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dos sapa­tos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A espanhola arrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas.
Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o ho­mem nasce, sonha, ama e morre. Em 1918, a esquina, e o bote­quim, e a calçada, e o meio-fio seriam metafísicos também. Por­que lá se morria, a toda hora. Mas eis o que eu queria dizer: — vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empi­lhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanha­dos no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gri­tar para a carroça de lixo: — “Aqui tem um! Aqui tem um!”. E então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atira­do em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.
E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes, Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era des­pejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emer­gia uma mão cheia de bichos.
Ninguém se lembraria de fazer uma missa de sétimo dia. O brasileiro é um homem de fé. Conheço patrícios que têm, ao mesmo tempo, três, quatro religiões. Pois, na espanhola, nin­guém acreditava em nada. O sujeito mal tinha tempo de morrer. E eu cada vez entendia menos aqueles enterros fulminan­tes, sem dourados, sem cavalos, sem penachos.
Por que a peste? Eu ouvia dizer que os culpados eram os mortos insepultos da guerra. O nome “espanhola” realmente era um mistério. Lá em casa, todos caíram de cama, menos eu. Meu irmão Augusto, recém-nascido, era um pequenino esqueleto, com um leve, diáfano revestimento de pele. Mas não cho­rava, nem gemia. Tão quieto que mais parecia um martírio con­sentido. Houve uma noite, uma tarde, não sei, em que parecia agonizar. Mas, de repente, abriu os olhos, sorriu numa euforia de anjo. E sobreviveu.
De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humi­lhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste dei­xara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: — “Quem não morreu na espanhola?”. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.

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