Escrevi, certa vez, uma crônica meio cruel, e da qual me arrependi. Dizia eu que não há ninguém mais narcisista do que o defunto. Ele está sempre bem posto; é solene, hierático, como um mordomo de filme policial inglês. E me lembro que, na ocasião, contei um episódio de rara impiedade.
Eis o fato: — pouco antes, morrera um pastor protestante do meu bairro. Residia a duas quadras lá de casa. De noite, desci do bonde e passei pela sua porta. Seria deselegante (vá lá o deselegante) não entrar. Tomei coragem e fui cumprimentar a viúva e demais parentes. E comigo entrou um bêbado, vejam vocês. O sujeito não conhecia ninguém, ali. Mas vira o ajuntamento e resolvera espiar. E, então, aconteceu esta coisa inédita e abominável: — ao ver o defunto de gravatinha-borboleta, o pau-d’água começou a rir e continuou rindo, num crescendo pavoroso.
Suas gargalhadas iam de uma esquina a outra e atravessavam a noite. Imediatamente, cães da vizinhança responderam. E esse alarido canino propagou-se de quintal em quintal, acordando os galos, que, por sua vez, começaram a cantar fora de hora. Nos terrenos baldios, faunos e vampiros também esganiçavam o riso torpe. E só o morto, com sua gravatinha-borboleta, permaneceu incomovível. O defunto não alterou, em nada, a sua correção atroz de mordomo de filme policial.
Contei a fábula para chegar à espanhola. Claro que, em 1918, isto aqui era um outro Rio, o Rio dos lampiões, dos bondes e dos enterros residenciais. Se não existiam mais as carruagens de Dumas pai, ainda se podia passear em tílburis machadianos. Botafogo era Machado de Assis puro.
E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. Na fábula acima, vimos que o defunto no seu narcisismo obsessivo foi ao requinte da gravatinha-borboleta. Mas a espanhola não fazia nenhuma concessão à vaidade dos mortos. E o apavorante eram a solidão, o abandono e, sobretudo, a humilhação do cadáver.
Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: — na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.
O sujeito morria sem vela. Nós sabemos o que é e como é o brasileiro. Acontece, aqui, uma coisa misteriosíssima e linda. Se o sujeito morre na rua, atropelado ou por motivo outro qualquer, surge, instantaneamente, uma vela ao seu lado. É automático. Não importa que seja na Presidente Vargas, no Mangue, na avenida Brasil ou num descampado da Boca do Mato. Ninguém sabe, e não saberá jamais quem pôs a vela, e que fósforo a acendeu. A chama trêmula, que nenhum vento apaga, torna a morte mais amiga, mais compadecida e mais feérica.
Pois essa estrela dos atropelados, essa estrela de esquina, de meio-fio, de asfalto, não ardeu pelos mortos da espanhola. Eu, da minha janela, espiava os caminhões passando. E não entendia mais nada. Antes da gripe, achava a morte rigorosamente linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, e pelas alças de prata. Lembro-me de que, na primeira morte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dos sapatos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A espanhola arrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas.
Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce, sonha, ama e morre. Em 1918, a esquina, e o botequim, e a calçada, e o meio-fio seriam metafísicos também. Porque lá se morria, a toda hora. Mas eis o que eu queria dizer: — vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: — “Aqui tem um! Aqui tem um!”. E então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.
E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes, Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos.
Ninguém se lembraria de fazer uma missa de sétimo dia. O brasileiro é um homem de fé. Conheço patrícios que têm, ao mesmo tempo, três, quatro religiões. Pois, na espanhola, ninguém acreditava em nada. O sujeito mal tinha tempo de morrer. E eu cada vez entendia menos aqueles enterros fulminantes, sem dourados, sem cavalos, sem penachos.
Por que a peste? Eu ouvia dizer que os culpados eram os mortos insepultos da guerra. O nome “espanhola” realmente era um mistério. Lá em casa, todos caíram de cama, menos eu. Meu irmão Augusto, recém-nascido, era um pequenino esqueleto, com um leve, diáfano revestimento de pele. Mas não chorava, nem gemia. Tão quieto que mais parecia um martírio consentido. Houve uma noite, uma tarde, não sei, em que parecia agonizar. Mas, de repente, abriu os olhos, sorriu numa euforia de anjo. E sobreviveu.
De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: — “Quem não morreu na espanhola?”. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.
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