domingo, 19 de abril de 2009

Capítulo 13 - A Menina sem Estrela

E eis que o Hélio Pellegrino e o Mário Pedrosa foram pas­sar três dias em Cabo Frio. O Mário tem, lá, uma casa selvagem. Eu os imagino na praia, ouvindo o silêncio das ilhas. Nada de jornal, de manchete. Estavam espantosamente sós. E não leram, através das 72 horas, um único e escasso jornal, uma única e escassa manchete. Era uma solidão virginalmente analfabeta.
E, então, nos três dias e nas três noites, Hélio Pellegrino e Mário Pedrosa foram dois centauros e repito: — dois centau­ros esculpidos em areia, sal e vento. Depois voltaram, claro. Mas vinham convencidos de que o asfalto é homicida e suicida. Na vida urbana o homem mata e se mata. Eis o que eu queria dizer: — também homicida e suicida foi o Carnaval de 1919, logo de­pois da espanhola.
O Hélio Pellegrino não era nascido. O Mário Pedrosa, sim. Mas o Hélio Pellegrino não era nascido, nem o Otto Lara Resende e muito menos o Cláudio Mello e Sousa, nem o Alfredo C. Macha­do. Mas já andava por aí o Álvaro Nascimento, que hoje escreve no Jornal dos Sports sob pseudônimo de Zé de S. Januário. Na espanhola, ele foi caçado, quase laçado no meio da rua. O nosso Álvaro só adoeceu no fim da gripe e quase morreu quando já nin­guém morria. Como eu ia dizendo: — deram-lhe uma pá e disse­ram-lhe: — “Vamos enterrar defunto!”.
E ele os enterrou, aos borbotões. Foi coveiro. E, ainda ho­je, vê um morto, qualquer morto, como a um velho conheci­do. Mas voltemos ao Carnaval de 18, aliás, 19. Hoje, temos um sociólogo, o Sérgio Lemos, que liga tudo à epopéia industrial. Se a galinha pula a cerca do vizinho, se o caçula tem coquelu­che, se usamos cabeleira à Búfalo Bill — está explicado. As coi­sas acontecem, e só acontecem, porque o Brasil se industrializa.
Mas eu me permitiria insinuar que, em 1919, não foi bem assim. Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, es­pectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ain­da se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mes­mo, substituída.
Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tor­nava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pen­sar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.
Estou aqui reunindo as minhas lembranças. Aquele Carna­val foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal ves­tidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defun­to que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata — é mais cruel e mais ressentido do que um nero ultra­jado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou sujei­tos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no Carnaval.
Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamen­te, ainda não ocorrera para nós a abertura dos portos. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera.
E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: — até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na ma­nhã seguinte, virou o Rio de Benjamin Costallat ou, ainda, do Theo Filho. — “Caímos muito de categoria”, dirão vocês. Res­pondo que até um verso de jornal de modinha, ou uma man­chete de O Dia, tem a sua dimensão sociológica. Desde as pri­meiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da es­panhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalga­vam os telhados, os muros, as famílias.
Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: — “Na minha casa não racha lenha./ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa não falta água. / Na mi­nha abunda.” etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de paroxismo em paroxismo.
Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; houve um certo recuo. Mas o Rio de Machado de Assis, ou de Macedo, ou sei lá, estava morto. O que quero dizer, ainda, sobre o Carnaval da espanhola é que foi de um erotismo absur­do. Daí a sua horrenda tristeza. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.
Mas escrevi que o desejo é triste. Vejam o último Carnaval, o de 67. Nunca as mulheres se despiram tanto. Muitas usavam me­nos que a folha da parreira. Foi essa nudez difusa, multiplicada, oferecida, que matou todo o erotismo dos bailes e das ruas. Os homens nem olhavam os nus; ou olhavam com surdo ressenti­mento e um tédio cruel. Era como se, de repente, nascesse uma incompatibilidade maligna entre os dois sexos. E, por isso, foi um salubérrimo Carnaval, sem nenhuma obscenidade. O que víamos, nos bailes, nas ruas, nas avenidas, eram castíssimas multidões.
Todavia, de vez em quando, julgo perceber no Rio moder­no o clima de 1919, logo após a espanhola. Imaginem vocês que, há uns dez ou quinze dias, o Otto Lara Resende resolveu conhecer a noite. Como se sabe, há toda uma promoção tenaz e profissional da noite. Há sujeitos que pagam o leite do caçula e o sapato da mulher escrevendo sobre a vida noturna. E o Ot­to traçou o itinerário sábio e proveitoso e invadiu a madrugada.
É ele próprio quem o diz. Voltou da noite apavorado. Por exemplo: o Bateau. Todo mundo desgraçado, todo mundo no extremo limite da loucura e do suicídio. É uma excitação sem desejo. É uma obscenidade sem prazer. É um deserto interior, deserto inconsolável, sem uma pia, sem uma bica. De repente, o Otto viu um padre. Quem o trouxe, quem? Segundo o próprio Otto, ele veio pela mão de um velho conhecido nosso: — o Diabo. E podia ser também o próprio Satã, numa de suas inumeráveis caracterizações. De que igreja, ou de que deus, seria essa batina que florescia, ali, numa mesa do Bateau? Súbito, a batina come­çou a se encharcar de uísque. Aquele só podia ser o sacerdote de uma fé defunta e de um deus também fenecido. E todo mundo, ali, tinha a cara vingativa dos suicidas. No seu canto, o religioso passava a mão na cara para sentir a própria hediondez.

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