segunda-feira, 20 de abril de 2009

Capítulo 14 - A Menina sem Estrela

Foi o Hélio Pellegrino quem chamou a atenção: — “Você intrigou o Otto com o Bateau!”. Advertido pelo amigo, fui re­ler o capítulo de ontem. Realmente, o querido Otto Lara Re­sende faz uma série de comentários amargos sobre a noite, ou melhor dizendo, contra a noite. E uma das referências recai, jus­tamente, sobre o Bateau, que é apresentado como um caldei­rão de falsas delícias.
Sem querer e sem saber, teria eu cometido uma dessas in­confidências supremas. O Hélio Pellegrino esteve com o Otto, certa vez, no Bateau. E foi uma testemunha visual e auditiva do seu prestígio na casa. Quando o Otto chega, as paredes se abrem, as cadeiras disputam a sua preferência, os guaranás, as coca-colas e os sanduíches o atropelam. O Hélio estava a seu lado e viu tudo. O Otto passando por entre rapapés e os garçons, reve­rentes: — “Doutor, doutor!”.
O brasileiro chamado de “doutor” treme em cima dos sapatos. Seja ele rei ou arquiteto, pau-de-arara, comerciário ou ministro, fica de lábio trêmulo e olho rútilo. E só o Otto é cha­mado de “doutor” lá na praça Serzedelo Correia. Pois bem. E, súbito, sai, nas minhas Memórias, que o meu amigo acha o Bateau uma jaula onde estrebucham ou uivam todas as hienas da nossa depressão.
O pior não são as hienas. O pior é que o Otto viu, lá, uma batina. Eis uma presença estarrecedora. Ora, o Otto acredita no Diabo. Jantando comigo, o Zé Luiz, o doce Braga, o Armando Nogueira, o Sérgio Bernardes, ele foi interpelado. Sim, alguém Perguntou-lhe se acreditava no abominável Pai da Mentira. Não fez nenhum mistério: — “Só acredito no Diabo”.
Segundo Otto, o padre fora ao Bateau levado pela mão de Satã. Ou, repito, era o próprio Satã, num dos seus inumeráveis disfarces. Como se vê, a hipótese é fascinante. Jean-Paul Sartre costumava ver lagostas fantásticas. Elas subiam-lhe pelas pernas, ou escorriam-lhe do peito, ou desciam-lhe da cartola. Certa vez, na Ópera, ele as viu, no lustre, de cabeça para baixo, como trapezistas.
Essas lagostas eram o Diabo que assim se multiplicava para confundir e atormentar o mestre. Outras vezes, o Príncipe das Trevas assume forma de pequeninos chacais, do tamanho qua­se de uma pulga. No caso de Otto, Satã preferiu fingir-se de pa­dre. Sabia que o romancista ia ao Bateau, pôs uma batina e lá apareceu de repente. Ninguém o viu entrar, ninguém o viu sair. E, segundo consta, nem pagou a conta.
Todavia, ao escrever estas notas, sou assaltado por uma dú­vida. Não sei, francamente não sei, se incorri ou não num enga­no auditivo. Eis o que me pergunto: o Otto falou no Bateau, no Bistrô? O fato é que o sacerdote estava na noite, desgarrado na noite, e ardia em mil danações.
Mas falei em batina e volto à minha infância. Meu Deus, eu queria acreditar, como acreditei. Aos oito anos de idade, tinha uma fé deslumbrante. Quando via um padre, ficava na dúvida: — se ia, lá, beijar-lhe a mão. Umas tias me levavam para a Igreja protestante; outras, me arrastavam para a Igreja católica. Mas sempre fiz, ao protestantismo, uma objeção grave: — eu queria santos, eu não dispensava santos. De mais a mais, não via pa­dres, nem freiras protestantes.
Durante vários anos, quis ser coroinha. Mas como ia dizen­do: — aos oito anos e, portanto, ainda na rua Alegre, ocorreu um episódio que me feriu profundamente. Ainda outro dia, em conversa com o Carlos Tavares, na redação de O Globo, disse-lhe: — “Eu fui o maior pudor físico do Brasil”. Ele achou gra­ça, eu também e paramos por aí. Mas não mentia. O menino, que fui, não admitia, jamais, que o vissem nu. E, um dia, eu es­tava tomando banho. Estava tomando banho e...
O ferrolho da porta do banheiro tinha um defeito qualquer. De repente, alguém empurra e abre. Era uma velha tia que pas­sava uns tempos lá em casa. Enfiou a cara e me viu. Logo vol­tou atrás e fechou tudo. Mas me vira, eis a verdade, me vira. Num segundo, na fração fulminante de um segundo, o menino pôs as mãos em folha de parreira. E nada descreve, e nada se com­para ao sofrimento infantil, o espanto, o ódio e a cólera. Nunca houve uma nudez tão ofendida, tão humilhada, tão ressentida.
Reparem como, de vez em quando, ainda hoje falo em nudez. É uma tranqüila e, direi mesmo, confessa obsessão. O Paulo Francis há de achar uma graça superior e infinita no meu ressentimento contra o biquíni. Aí está: — o biquíni. Eu o vejo como uma nudez pior do que a nudez. Eis o que eu gostaria de explicar: — adulto, e já velho, ainda conservo muito do menino que foi visto, no banho, por uma tia que já morreu.
E o que me doeu é que vi, no seu olhar, faiscando no seu olhar, uma curiosidade divertida e maligna. Claro que isso não existia, só existia na minha imaginação. Mas a odiei. Fiquei, por toda a minha infância, com um sentimento de mácula na carne e na alma. Foi aí que pensei em ser coroinha, padre. E mais: — cheguei a pensar e a desejar minha crucificação.
Não entendia por que as meninas, os meninos não beija­vam a mão de freiras, só de padre. Lembro-me das vezes em que entrei na igreja. Ninguém me chamava, ninguém me leva­va. Eu ia por mim mesmo; era quase uma predestinação. Nada me tocava mais do que os dourados das colunas e, por toda a parte, a palpitação de luzes e de sombras. Queria viver ali, não sair dali, olhando os santos vergados e o sono dos círios nos altares.
Há poucos anos, fomos eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino ao Mosteiro de São Bento. Os dois amigos já o co­nheciam e avisaram: — “Uma beleza, uma beleza!”. D. Marcos Barbosa, a quem fui então apresentado, nos conduziu. E, per­correndo a igreja, me senti o mesmo menino de 1920, sim, o menino que precisava purificar-se da nudez vista por uma por­ta entreaberta. Lembro-me de que, de repente, começamos a pisar sobre túmulos de monges. Eram velhíssimas mortes de cem, 150, duzentos anos. Meus amigos não perceberam nada, nem eu lhes disse nada. Mas desejei ser uma daquelas ossadas e estar ali enterrado, eternamente.

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