Eis o que senti, na minha visita ao Mosteiro de São Bento: — o desejo de ser um punhado de ossos. Por cima, na pedra do túmulo, gravados um nome, uma data e uma cruz. A meu lado, d. Marcos Barbosa sorria para mim, para nós; e seus dentes eram os de Manuel Bandeira. Mas eu não pensava em d. Marcos Barbosa: queria ser uma fina, diáfana, meiga ossada de monge.
Ainda vimos uma missa, se não me engano das seis horas. Eu, o Hélio, o Otto olhávamos, do alto, os padres que iam chegando de cabeça baixa. E era tão bonito que mais parecia uma missa de estúdio. Vinha não sei de onde um sol — não sei que sol — e a luz atravessava tudo; e a chama de um círio passava a outro círio; e os santos, e as toalhas e nós, todos tremíamos de beleza. Mas eu continuava tecendo a minha fantasia: — fora um monge, morrera há cem anos e o que restava de mim era um punhado de ossos.
Já disse que, em Aldeia Campista, a minha grande felicidade era sonhar no fundo do quintal. Aos nove anos, ou oito, sofri o grande encanto do cinema. Não havia então, que me lembre, nenhuma impropriedade. Se uma mãe resolvesse dar o seio ao recém-nascido na platéia — seria naturalíssimo. Era o tempo de Francesca Bertini, William S. Hart, Rolleaux, William Farnum, Tom Mix, e outros, e outros. Ia ao cinema e, no dia seguinte, estava no fundo do quintal, junto do tanque. Não queria ninguém perto. De cócoras, recriava tudo que a tela ampliara.
Eu me imaginava Tom Mix, e William Farnum, e William S. Hart. Dava tiros; matava e morria; depois fugia, levando a mocinha na garupa. Mas falo dos mocinhos, dos cavalos, dos tiros e estou esquecendo alguém, alguém que assombrou minha infância. Eis a verdade: — antes de ser Tom Mix, ou outro deslumbrante cowboy da época, me imaginei Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.
Viva mil anos e não me esquecerei, jamais, do primeiro filme da Vida de Cristo. Esse primeiro filme é também o último. Continua sendo levado até hoje, com um descaro empolgante. Claro que, agora, só passa nos poeiras do subúrbio. E há sempre uma platéia de pobres-diabos para uma Vida de Cristo. Mas quando eu a vi, pela primeira vez, a cópia estava fresquinha e as pessoas que lá compareceram saíram em cacos.
Foi então que descobri esta verdade eterna do palco ou da tela: — a verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido, ululante, melhor. O grande ator ou atriz é recente. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o grande ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslumbra e fanatiza a platéia.
Mas já estou divagando, novamente. Eis o que eu queria dizer: — o rapaz que fez no filme o Cristo era justamente o canastrão nato e hereditário. E, porque era canastrão, feriu fundo a carne e a alma dos presentes. Também canastrões eram Pilatos, Madalena, José e todo o elenco. Não escapava ninguém. E o rendimento dramático foi uma loucura. Atracada às cadeiras, a platéia soluçava. A emoção vinha lá das profundezas e, eu quase dizia, vinha das tripas torcidas, retorcidas.
Bem me lembro que, ao sair do cinema, na esquina seguinte, vi dois garotos e um deles disse um palavrão. E o nome feio, pois do martírio, me cegou de espanto e de ódio. Já falei do meu pudor físico. Até os onze anos de idade, não soltara, jamais, em momento nenhum, um palavrão. E nada se compara ao meu assombro e vergonha quando vi que os meus irmãos mais velhos diziam obscenidades horrendas. Ainda me ficou de Aldeia Campista um último pudor contra certas palavras. Uma delas: — “esculhambação”. Esta me ofende, me humilha, me dilacera. Fui, por isso mesmo, um menino só. Não tinha amigos, porque os outros meninos soltavam palavrões como pequeninos canalhas.
Alguém há de perguntar por que uso eu palavrões no meu teatro. É uma velha história, que explicarei depois. Mas não pensem que me libertei do menino antigo. Ali, ele está cravado em mim. Ainda hoje me olho por dentro; e vejo em mim todo um movimento de padres, de santos, cristos, virgens e, até, coroinhas. Todo esse elenco não aceita os palavrões que, depois de adulto, venho largando pelo mundo. Ainda há pouco, passei por uma experiência reveladora. Foi o seguinte: tenho um amigo, de cinqüenta anos, que apanhou uma paixão como se apanha escarlatina (doença hoje obsoleta).
Aos cinqüenta anos, o sujeito só tem paixões de ópera, de Vicente Celestino, de primeira página de O Dia e da Luta Democrática. A menina (era menina) ainda não fizera nem a maioridade. Alguns idiotas da objetividade chegaram a adverti-lo: — “Abre o olho, que essa pequena é uma débil mental de babar na gravata”. Abrir que olho, se o meu amigo estava cego, surdo e mudo de desejo? E aquele sentimento tardio, funesto, ameaçava levar tudo de roldão, tudo. Quando brigava com a garota, o meu amigo chegava a pensar: — “Ou mato ou me mato?”. Um dia, eu o encontro numa depressão atroz. Pisca o olho: — “Hoje, estou bom de cintura”. Não entendi a gíria. Ele, então, mostrou o revólver enfiado no cinto. Eu estava diante de um Tom Mix.
Como não a conhecia, fazia minhas suposições: — deve ser uma Maria Eduarda Maia aos dezessete anos; ou, então, a Natacha, de Guerra e paz. Já o meu amigo se confessava um candidato forte a uma manchete de O Dia e da Luta Democrática.
Passei uma semana sem o ver. Até que, ontem, esbarro com ele, na Avenida. Quase pergunto: — “Mataste?”. E, então, ali mesmo, em cima da calçada, me contou tudo. Na véspera, tivera uma discussão intranscendente com a musa. E, de repente, ela o alveja com uma rajada de obscenidades jamais concebidas. Ele ouviu palavrões que não conhecia e que o próprio Bocage teria anotado no seu caderninho. E, ali, a paixão morreu e estrebuchou como uma víbora danada. Eu ouvia, sem uma palavra. E me deu um tédio brutal da humana pornografia. Passei o resto do dia achando que somos todos canalhas porque dizemos palavrões.
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