terça-feira, 21 de abril de 2009

Capítulo 15 - A Menina sem Estrela

Eis o que senti, na minha visita ao Mosteiro de São Bento: — o desejo de ser um punhado de ossos. Por cima, na pedra do túmulo, gravados um nome, uma data e uma cruz. A meu lado, d. Marcos Barbosa sorria para mim, para nós; e seus dentes eram os de Manuel Bandeira. Mas eu não pensava em d. Marcos Bar­bosa: queria ser uma fina, diáfana, meiga ossada de monge.
Ainda vimos uma missa, se não me engano das seis horas. Eu, o Hélio, o Otto olhávamos, do alto, os padres que iam che­gando de cabeça baixa. E era tão bonito que mais parecia uma missa de estúdio. Vinha não sei de onde um sol — não sei que sol — e a luz atravessava tudo; e a chama de um círio passava a outro círio; e os santos, e as toalhas e nós, todos tremíamos de beleza. Mas eu continuava tecendo a minha fantasia: — fora um monge, morrera há cem anos e o que restava de mim era um punhado de ossos.
Já disse que, em Aldeia Campista, a minha grande felicida­de era sonhar no fundo do quintal. Aos nove anos, ou oito, so­fri o grande encanto do cinema. Não havia então, que me lem­bre, nenhuma impropriedade. Se uma mãe resolvesse dar o seio ao recém-nascido na platéia — seria naturalíssimo. Era o tempo de Francesca Bertini, William S. Hart, Rolleaux, William Farnum, Tom Mix, e outros, e outros. Ia ao cinema e, no dia seguinte, estava no fundo do quintal, junto do tanque. Não queria nin­guém perto. De cócoras, recriava tudo que a tela ampliara.
Eu me imaginava Tom Mix, e William Farnum, e William S. Hart. Dava tiros; matava e morria; depois fugia, levando a mo­cinha na garupa. Mas falo dos mocinhos, dos cavalos, dos tiros e estou esquecendo alguém, alguém que assombrou minha infância. Eis a verdade: — antes de ser Tom Mix, ou outro des­lumbrante cowboy da época, me imaginei Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.
Viva mil anos e não me esquecerei, jamais, do primeiro fil­me da Vida de Cristo. Esse primeiro filme é também o último. Continua sendo levado até hoje, com um descaro empolgante. Claro que, agora, só passa nos poeiras do subúrbio. E há sempre uma platéia de pobres-diabos para uma Vida de Cristo. Mas quando eu a vi, pela primeira vez, a cópia estava fresquinha e as pessoas que lá compareceram saíram em cacos.
Foi então que descobri esta verdade eterna do palco ou da tela: — a verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais lím­pido, líquido, ululante, melhor. O grande ator ou atriz é recen­te. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o gran­de ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslum­bra e fanatiza a platéia.
Mas já estou divagando, novamente. Eis o que eu queria dizer: — o rapaz que fez no filme o Cristo era justamente o ca­nastrão nato e hereditário. E, porque era canastrão, feriu fundo a carne e a alma dos presentes. Também canastrões eram Pilatos, Madalena, José e todo o elenco. Não escapava ninguém. E o rendimento dramático foi uma loucura. Atracada às cadeiras, a platéia soluçava. A emoção vinha lá das profundezas e, eu quase dizia, vinha das tripas torcidas, retorcidas.
Bem me lembro que, ao sair do cinema, na esquina seguin­te, vi dois garotos e um deles disse um palavrão. E o nome feio, pois do martírio, me cegou de espanto e de ódio. Já falei do meu pudor físico. Até os onze anos de idade, não soltara, jamais, em momento nenhum, um palavrão. E nada se compara ao meu assombro e vergonha quando vi que os meus irmãos mais velhos diziam obscenidades horrendas. Ainda me ficou de Aldeia Campista um último pudor contra certas palavras. Uma delas: — “esculhambação”. Esta me ofende, me humilha, me dilacera. Fui, por isso mesmo, um menino só. Não tinha ami­gos, porque os outros meninos soltavam palavrões como pe­queninos canalhas.
Alguém há de perguntar por que uso eu palavrões no meu teatro. É uma velha história, que explicarei depois. Mas não pen­sem que me libertei do menino antigo. Ali, ele está cravado em mim. Ainda hoje me olho por dentro; e vejo em mim todo um movimento de padres, de santos, cristos, virgens e, até, coroi­nhas. Todo esse elenco não aceita os palavrões que, depois de adulto, venho largando pelo mundo. Ainda há pouco, passei por uma experiência reveladora. Foi o seguinte: tenho um amigo, de cinqüenta anos, que apanhou uma paixão como se apanha escarlatina (doença hoje obsoleta).
Aos cinqüenta anos, o sujeito só tem paixões de ópera, de Vicente Celestino, de primeira página de O Dia e da Luta Demo­crática. A menina (era menina) ainda não fizera nem a maioridade. Alguns idiotas da objetividade chegaram a adverti-lo: — “Abre o olho, que essa pequena é uma débil mental de babar na grava­ta”. Abrir que olho, se o meu amigo estava cego, surdo e mudo de desejo? E aquele sentimento tardio, funesto, ameaçava levar tudo de roldão, tudo. Quando brigava com a garota, o meu ami­go chegava a pensar: — “Ou mato ou me mato?”. Um dia, eu o encontro numa depressão atroz. Pisca o olho: — “Hoje, estou bom de cintura”. Não entendi a gíria. Ele, então, mostrou o re­vólver enfiado no cinto. Eu estava diante de um Tom Mix.
Como não a conhecia, fazia minhas suposições: — deve ser uma Maria Eduarda Maia aos dezessete anos; ou, então, a Natacha, de Guerra e paz. Já o meu amigo se confessava um candi­dato forte a uma manchete de O Dia e da Luta Democrática.
Passei uma semana sem o ver. Até que, ontem, esbarro com ele, na Avenida. Quase pergunto: — “Mataste?”. E, então, ali mes­mo, em cima da calçada, me contou tudo. Na véspera, tivera uma discussão intranscendente com a musa. E, de repente, ela o alve­ja com uma rajada de obscenidades jamais concebidas. Ele ouviu palavrões que não conhecia e que o próprio Bocage teria anota­do no seu caderninho. E, ali, a paixão morreu e estrebuchou co­mo uma víbora danada. Eu ouvia, sem uma palavra. E me deu um tédio brutal da humana pornografia. Passei o resto do dia achan­do que somos todos canalhas porque dizemos palavrões.

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