quarta-feira, 22 de abril de 2009

Capítulo 16 - A Menina sem Estrela

Eu durmo, mas a úlcera nunca. Essa está sempre em vigí­lia. Espera, com maligna paciência, que passe a ação do leite, das papinhas, dos biscoitos sem sal e sem açúcar. E, quando o estômago se esvazia, ei-la que se devora a si mesma. Quase to­das as madrugadas a coisa se repete. Acordo, às três, quatro da manhã, com fogo nas entranhas.
Saio da cama: vou tropeçando nas portas, esbarrando nas me­sas e cadeiras. Na cozinha está um prato de mingau coberto com outro prato. E a papa hedionda vai, pouco a pouco, pacificando a danação da úlcera. Ah, que coisa linda e que coisa santa quando a ferida deixa de doer. É a bem-aventurança. Foi o que aconte­ceu na noite de ontem. Às quatro da manhã sou acordado pela úlcera da madrugada. Como das outras vezes, fui tomar o mingau.
E quando, finalmente, a dor passou, comecei a pensar em Samuel Wainer. Não volto mais para a cama; vou para a janela, que se abre para o resto da noite. Samuel, Samuel. Num instan­te, todas as varandas da memória se debruçam sobre a Última Hora, não a atual, da praça da Bandeira, mas a suntuária, da Pre­sidente Vargas. Eu me lembro das nossas instalações. Na nossa frente estava o “Balança, mas não cai” ou “Mula Manca”, com seus vinte e não sei quantos andares.
No meio de pardieiros espectrais, tendo por fundo uma favela, o edifício da Última Hora era um pavão enfático. Em capítulos posteriores contarei o que foi, do princípio ao fim, a minha experiência pessoal, humana, jornalística, com Samuel Wainer e o seu jornal. Entre parênteses, diria que essa experiên­cia ainda não está cicatrizada em mim. Hoje, porém, o que me interessa é lembrar a ira de Carlos Lacerda, contra Samuel e contra a Ultima Hora.
Isso foi há, relativamente, pouco tempo. Mas como é anti­go, senil ou mumificado, o passado recente. Já me parece que tudo que aconteceu é anterior à primeira batalha do Marne, an­terior à vacina obrigatória. Todavia, antes de prosseguir, preci­so dizer ainda duas palavras sobre o nosso prédio. Era um edi­fício narcisista por fora e por dentro.
Por fora, era um soco visual no transeunte. Quem passava pela praça Onze, a pé, de ônibus, lotação ou bonde, tomava um susto. Aquele colosso agredia e humilhava o resto da paisagem. E, por dentro, a mesma coisa. Quando o Diário Carioca, ex-dono, saiu de lá, e passamos para o andar de cima, fiquei mais perdido. Sou um pobre nato e, repito, um pobre vocacional. Ainda hoje, o luxo, a ostentação, a jóia me confundem e me ofendem.
E, de mais a mais, eu vinha de redações pobres e, direi mes­mo, famélicas. De repente, despertava na Última Hora. Aquilo mais parecia um feérico, suntuário pesadelo. Imaginem vocês um salão irreal, infinito. Dir-se-ia uma redação de estúdio, com um Cecil B. de Mille a manobrar suas massas. E eu não entrava no gabinete de Samuel sem uma certa dispnéia emocional. Lá dentro, havia um décor meio lúgubre. Sim, a única coisa que faltava no gabinete do diretor era uma cascata artificial, com fi­lhote de jacaré.
Claro que nem Samuel, nem qualquer outro da Última Hora contribuíra com um vago e escasso enfeite para tamanha mise-en-scène. Tudo corria por conta do Diário Carioca, Horácio de Carvalho e sua equipe. Mas havia uma funesta coincidência entre a mania de grandeza de Samuel e aquela pompa. Samuel movia-se, ali, como um peixinho no seu aquário natal.
Vinha ele de experiências jornalísticas bem mais modestas. Milhares de vezes fora um pobre ser sem um tostão no bolso. E, agora, no palácio da Presidente Vargas, era o ex-pobre-diabo, o ex-Raskolnikov. O simples fato de estar ali, de sentar-se ali, parecia desagravá-lo de velhas humilhações. Mas era pouco pa­ra a sua fome. Sonhava com um império jornalístico.
E, de repente, veio Carlos Lacerda. O grande polemista sa­be deflagrar uma catástrofe e, depois, administrá-la. Depende do seu exclusivo arbítrio e de sua técnica demoníaca o movi­mento, a extensão, a profundidade da catástrofe. Um povo pos­sui trevas, que convém não provocar. Em 48 horas, Carlos La­cerda mobilizou todas as nossas trevas interiores contra Samuel Wainer.
Aconteceu, então, o seguinte: — de repente, tornou-se uma vergonha trabalhar na Última Hora. Primeiro, foi apenas Carlos Lacerda. Em seguida, começaram a aparecer outros Carlos Lacerdas milhares, milhões de Carlos Lacerdas. Mais tarde surge uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Meu Deus, pode-se pendurar um sujeito numa forca, ou crivá-lo de balas, ou beber-lhe o sangue como groselha. Mas ninguém tem direito de fazer o que a Comissão Parlamentar de Inquérito fez com Sa­muel Wainer.
Eu estava lá, vi e ouvi tudo. Com uma fidelidade obtusa, fiquei atrás da cadeira de Samuel, pedindo pelo amor de Deus que me fotografassem. E, de fato, no dia seguinte, saía na Tri­buna da Imprensa o clichê em três colunas com o título: — A vida como ela é.... E o jornal ainda lhe acrescentou as reti­cências. Nunca vi ninguém tão humilhado e tão ofendido. Nem crueldade mais covarde.
Enquanto isso a Última Hora deixara de pagar. Nada des­creve a pusilanimidade dos anunciantes. E foi uma fuga, também, de leitores. Todo o Brasil contra Samuel Wainer. Eu estava vendo a hora em que iam caçá-lo, no meio da rua, a pauladas, como uma ratazana prenha. Eu me perguntava: — “Por que ele não mata ou por que não se mata?”. Essa formidável paciência foi um dos maiores espantos de minha vida.
Eu não teria a paciência de Samuel. Ninguém a teria. Outro qualquer meteria uma bala ou em si mesmo ou em Carlos La­cerda. Ou por outra: — em Carlos Lacerda, não. O chamado escândalo da Última Hora fizera de cada qual um Carlos Lacer­da. Samuel não podia sair por aí chumbando milhares, milhões de Carlos Lacerdas. Mas eis o que eu queria dizer: — uma gera­ção não basta para explicar tamanha paciência. Ela é anterior a Samuel, começou a ser elaborada, trabalhada há 6 mil anos. Eu me espantava; outros se espantavam. Samuel não, em mo­mento nenhum. O que ele via por trás dos deputados, de La­cerda, dos artigos, dos discursos e da cólera popular era um ve­lho conhecido: — o martírio.
Lembro-me de uma noite em que chego em casa tarde, dez e meia, quase onze horas. Vou ligar o rádio. Queria ouvir uma melodia qualquer, intranscendente, de preferência um tango (sou um dos poucos nostálgicos do tango). Estou repassando as estações e paro numa delas. Alguém estava berrando: — “O tarado Nelson Rodrigues!”. Claro, era o Carlos Lacerda.

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