Eu só trabalhava na Última Hora e não recebia. Por que não morri então de fome? Explico: — porque juntara uns suados, sofridos, amargurados oitenta contos. Era dinheiro, para a época era dinheiro. O Vilaça, de Os Maias, diria que, apesar da catástrofe, eu ainda tinha uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe borrar por cima. Mas gastei minhas economias, até o último e mísero vintém.
Disse que a Última Hora deixara de pagar. Não foi bem assim. Na belle époque do jornal, havia um departamento de concursos. O sujeito ia lá e via brindes pendurados até no lustre. Eis o que eu queria explicar: — enquanto durou a campanha, recebi, a título de salário, liquidificadores, panelas, colchões, cinzeiros, bandejas etc. etc. Era tão funda a minha depressão que me sentia remunerado com generosidade e abundância.
No caso da Última Hora, aprendi que toda unanimidade é hedionda. Poderão objetar que estou generalizando. Exatamente: — estou generalizando. O Brasil inteiro, sem exceção, estava contra Samuel Wainer, contra a Última Hora. Carlos Lacerda conquistara a unanimidade e a manipulava. Se ele trepasse numa mesa e berrasse: — “Lincha!” — estejam certos de que a unanimidade iria caçar Samuel no meio da rua. E sua carótida seria chupada como tangerina. E suas postas ficariam suspensas dos ganchos no açougue.
Realmente, a unanimidade nada tem a ver com a vida moral. Mas eu também sofri um massacre. Carlos Lacerda dizia de mim o diabo. Eu fazia, então, A vida como ela é... (durante dez anos, eu a escrevi, dia após dia, com uma pertinácia monótona e desesperadora). Se as novas gerações me perguntassem o que era A vida como ela é..., diria: — “Era sempre a história de uma infiel”.
Apenas isso. E o leitor era um fascinado. Comprava a Última Hora para conhecer a adúltera do dia. Claro que, na minha coluna, também os homens traíam. Mas o que o público exigia era mesmo a infidelidade feminina. Quando saí da Última Hora e acabei A vida como ela é..., o telefone não parava. Homens e mulheres queriam saber se não ia sair mais e por quê. Dir-se-ia que o problema do brasileiro é um só: — ser ou não ser traído.
Carlos Lacerda teve a paciência de selecionar trechos de um mês de minha coluna. Com uma pinça, catava uma frase ou um episódio e o isolava de seu ambiente e de sua justificação psicológica e dramática. O destaque feito valorizava o extrato ao infinito. E, além do mais, ele criava suspense, inflexionava, representava. No fim, até um bom-dia ficava obsceno.
Lembro-me de uma fala que ele selecionou para a antologia de A vida como ela é... . Certo personagem dizia o seguinte: — “Amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira”. A coisa dita assim, em tom de ópera, sem uma motivação lógica, causou o maior efeito na Câmara dos Deputados. Segundo me disseram, o então deputado Antônio Balbino teve um esgar de nojo supremo; e outros congressistas abriram os braços para o lustre, num mudo escândalo desolado.
A meu ver, porém, a coisa é menos abjeta do que parece. O personagem que dizia aquilo tinha lá a sua teoria. Segundo ele, no fim de certo tempo de rotina matrimonial, o amor, a paixão ou que outro nome tenha é substituído por um sentimento mais sereno, mais estável, mais benigno. Digamos a palavra e o sentimento: a amizade. De sorte que um desejo inopinado que venha turvar a pura e desinteressada estima — é quase incestuoso.
Mas não é só meu personagem que pensa assim. Ainda outro dia, um amigo meu — que o Carlos Lacerda também conhece — apareceu-me, de olho rútilo e lábio trêmulo. Puxou-me para um canto e gemeu: — “Imagina, rapaz, imagina”. Faz um suspense e continua: — “Fui com minha mulher à praia. Fui e me aconteceu uma que...”. Parou, sem coragem de ir até o fim. Pergunto: — “E daí?”. Ele explode: “Desejei a mãe dos meus filhos!”.
De fato, esse meu amigo (e de Carlos Lacerda) tem quatro filhos, sendo o mais velho de dezessete anos. Com dezoito anos de vida conjugal, acha ele que o amor não cabe mais no seu lar. E o fato de desejar a esposa, ainda que por um segundo fulminante, o dilacerou de vergonha e de remorso. Sentia-se um desses faunos de tapete que, nos terrenos baldios, atropelam as ninfas desacompanhadas.
E o certo é que A vida como ela é... foi mais um pretexto para exasperar a unanimidade. Os vizinhos que me viam chegar em casa, com um liquidificador debaixo do braço, olhavam para mim com escândalo e ira. “Lá vai o tarado”, deviam cochichar entre si. Eu podia abrir o embrulho e argumentar: — “Estão vendo esse liquidificador? É o meu salário”. No fundo, no fundo, eu achava o seguinte: — aquele liquidificador provava minha pureza, provava minha inocência. O sujeito que recebe, como remuneração profissional, uma panela, uma fruteira, é quase um são Francisco de Assis.
Uso muito nas minhas crônicas de esporte a imagem do pobre-diabo que se senta no meio-fio e começa a chorar. Eis o que eu queria dizer: — essa figura me ocorreu, pela primeira vez, durante a campanha contra a Última Hora. E era eu o pobre-diabo, era eu o Marmeladov de Crime e castigo. Vendo que a unanimidade também se voltava contra mim, e me chamava de “obsceno”, de “tarado”, sentia exatamente a vontade de me sentar no meio-fio para chorar lágrimas de esguicho.
A verdade é que eu não tinha a paciência multimilenar de Samuel. Se ele fosse enforcado; se seu corpo pendesse de uma árvore; e se os urubus o devorassem — ainda assim ele sobreviveria. Samuel é de um povo que não morre. Mas era a primeira vez que eu via a face horrenda, a face obscena da unanimidade. Muitas vezes, eu ficava em casa, até duas, três da manhã, pensando. Punha a vitrola tocando valsas em surdina e ficava tecendo as hipóteses mais furiosas. Imaginava: — “E se eu matasse o Carlos Lacerda? Se lhe desse um tiro?”. Via-o morto, com seu perfil de John Barrymore, e morto. Também imaginava a unanimidade uivando pelas ruas. Que faria ela, sem o líder que a criara e todos os dias a recriava? Mas sou muito mais suicida do que homicida. Só de me imaginar assassino de Carlos Lacerda, me sentia hediondo.
Mas Carlos Lacerda não morreu. Não. Quem morreu foi Getúlio. Com uma bala no peito, Vargas desfez a unanimidade. Ainda não morrera o som do tiro, e já a unanimidade sumia, até o último vestígio. Minto. Não sumiu. Simplesmente, mudou de dono. A Última Hora estava morta, enterrada. Foi exumada às pressas. A unanimidade queria agora o sangue de Carlos Lacerda.
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