quinta-feira, 23 de abril de 2009

Capítulo 17 - A Menina sem Estrela

Eu só trabalhava na Última Hora e não recebia. Por que não morri então de fome? Explico: — porque juntara uns sua­dos, sofridos, amargurados oitenta contos. Era dinheiro, para a época era dinheiro. O Vilaça, de Os Maias, diria que, apesar da catástrofe, eu ainda tinha uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe borrar por cima. Mas gastei minhas econo­mias, até o último e mísero vintém.
Disse que a Última Hora deixara de pagar. Não foi bem as­sim. Na belle époque do jornal, havia um departamento de con­cursos. O sujeito ia lá e via brindes pendurados até no lustre. Eis o que eu queria explicar: — enquanto durou a campanha, recebi, a título de salário, liquidificadores, panelas, colchões, cinzeiros, bandejas etc. etc. Era tão funda a minha depressão que me sentia remunerado com generosidade e abundância.
No caso da Última Hora, aprendi que toda unanimidade é hedionda. Poderão objetar que estou generalizando. Exatamen­te: — estou generalizando. O Brasil inteiro, sem exceção, esta­va contra Samuel Wainer, contra a Última Hora. Carlos Lacer­da conquistara a unanimidade e a manipulava. Se ele trepasse numa mesa e berrasse: — “Lincha!” — estejam certos de que a unanimidade iria caçar Samuel no meio da rua. E sua carótida seria chupada como tangerina. E suas postas ficariam suspensas dos ganchos no açougue.
Realmente, a unanimidade nada tem a ver com a vida moral. Mas eu também sofri um massacre. Carlos Lacerda dizia de mim o diabo. Eu fazia, então, A vida como ela é... (durante dez anos, eu a escrevi, dia após dia, com uma pertinácia monótona e desesperadora). Se as novas gerações me perguntassem o que era A vi­da como ela é..., diria: — “Era sempre a história de uma infiel”.
Apenas isso. E o leitor era um fascinado. Comprava a Últi­ma Hora para conhecer a adúltera do dia. Claro que, na minha coluna, também os homens traíam. Mas o que o público exigia era mesmo a infidelidade feminina. Quando saí da Última Ho­ra e acabei A vida como ela é..., o telefone não parava. Ho­mens e mulheres queriam saber se não ia sair mais e por quê. Dir-se-ia que o problema do brasileiro é um só: — ser ou não ser traído.
Carlos Lacerda teve a paciência de selecionar trechos de um mês de minha coluna. Com uma pinça, catava uma frase ou um episódio e o isolava de seu ambiente e de sua justificação psicológica e dramática. O destaque feito valorizava o extrato ao infinito. E, além do mais, ele criava suspense, inflexionava, representava. No fim, até um bom-dia ficava obsceno.
Lembro-me de uma fala que ele selecionou para a antologia de A vida como ela é... . Certo personagem dizia o seguinte: — “Amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira”. A coisa dita assim, em tom de ópera, sem uma motivação lógica, causou o maior efeito na Câmara dos Deputados. Segundo me disseram, o então deputado Antônio Balbino teve um esgar de nojo supremo; e outros congressistas abriram os braços pa­ra o lustre, num mudo escândalo desolado.
A meu ver, porém, a coisa é menos abjeta do que parece. O personagem que dizia aquilo tinha lá a sua teoria. Segundo ele, no fim de certo tempo de rotina matrimonial, o amor, a paixão ou que outro nome tenha é substituído por um sentimento mais sereno, mais estável, mais benigno. Digamos a palavra e o sentimento: a amizade. De sorte que um desejo inopinado que ve­nha turvar a pura e desinteressada estima — é quase incestuoso.
Mas não é só meu personagem que pensa assim. Ainda outro dia, um amigo meu — que o Carlos Lacerda também conhece — apareceu-me, de olho rútilo e lábio trêmulo. Puxou-me para um canto e gemeu: — “Imagina, rapaz, imagina”. Faz um suspense e continua: — “Fui com minha mulher à praia. Fui e me aconte­ceu uma que...”. Parou, sem coragem de ir até o fim. Pergunto: — “E daí?”. Ele explode: “Desejei a mãe dos meus filhos!”.
De fato, esse meu amigo (e de Carlos Lacerda) tem quatro filhos, sendo o mais velho de dezessete anos. Com dezoito anos de vida conjugal, acha ele que o amor não cabe mais no seu lar. E o fato de desejar a esposa, ainda que por um segundo fulminante, o dilacerou de vergonha e de remorso. Sentia-se um des­ses faunos de tapete que, nos terrenos baldios, atropelam as ninfas desacompanhadas.
E o certo é que A vida como ela é... foi mais um pretexto para exasperar a unanimidade. Os vizinhos que me viam che­gar em casa, com um liquidificador debaixo do braço, olhavam para mim com escândalo e ira. “Lá vai o tarado”, deviam co­chichar entre si. Eu podia abrir o embrulho e argumentar: — “Estão vendo esse liquidificador? É o meu salário”. No fundo, no fundo, eu achava o seguinte: — aquele liquidificador prova­va minha pureza, provava minha inocência. O sujeito que rece­be, como remuneração profissional, uma panela, uma fruteira, é quase um são Francisco de Assis.
Uso muito nas minhas crônicas de esporte a imagem do pobre-diabo que se senta no meio-fio e começa a chorar. Eis o que eu queria dizer: — essa figura me ocorreu, pela primeira vez, durante a campanha contra a Última Hora. E era eu o pobre-diabo, era eu o Marmeladov de Crime e castigo. Vendo que a unanimidade também se voltava contra mim, e me chamava de “obsceno”, de “tarado”, sentia exatamente a vontade de me sentar no meio-fio para chorar lágrimas de esguicho.
A verdade é que eu não tinha a paciência multimilenar de Samuel. Se ele fosse enforcado; se seu corpo pendesse de uma árvore; e se os urubus o devorassem — ainda assim ele sobrevi­veria. Samuel é de um povo que não morre. Mas era a primeira vez que eu via a face horrenda, a face obscena da unanimidade. Muitas vezes, eu ficava em casa, até duas, três da manhã, pen­sando. Punha a vitrola tocando valsas em surdina e ficava te­cendo as hipóteses mais furiosas. Imaginava: — “E se eu matas­se o Carlos Lacerda? Se lhe desse um tiro?”. Via-o morto, com seu perfil de John Barrymore, e morto. Também imaginava a unanimidade uivando pelas ruas. Que faria ela, sem o líder que a criara e todos os dias a recriava? Mas sou muito mais suicida do que homicida. Só de me imaginar assassino de Carlos Lacer­da, me sentia hediondo.
Mas Carlos Lacerda não morreu. Não. Quem morreu foi Ge­túlio. Com uma bala no peito, Vargas desfez a unanimidade. Ain­da não morrera o som do tiro, e já a unanimidade sumia, até o último vestígio. Minto. Não sumiu. Simplesmente, mudou de dono. A Última Hora estava morta, enterrada. Foi exumada às pressas. A unanimidade queria agora o sangue de Carlos Lacerda.

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