sexta-feira, 24 de abril de 2009

Capítulo 18 - A Menina sem Estrela

Qualquer devoção é linda. Não importa que o santo não a mereça. E mesmo que seja um santo falso. (Quero crer que tam­bém existam os santos canalhas.) Mas repito: — não importa. O belo, o patético, o sublime são as duas mãos postas e a fé ingê­nua e forte que se irradia de não sei que abismos radiantes. Tam­bém a solidariedade, a grande solidariedade, é comovente.
E com Samuel e a Última Hora fui solidário total. Era co­mo se estivesse disposto a morrer com um e outro e por eles. Hoje, ninguém entende abnegação tamanha. O tempo passou e o tempo deu ao que parecia sublime um perverso e fatal to­que humorístico.
O que me pôs a favor de Samuel foi a unanimidade contra. A verdade é que vinha, de longe, a minha admiração por Carlos Lacerda. Eu achava que o Brasil precisava, inclusive, dos seus defeitos. Ouvia dizer: — “É um louco!”. Mas não via o menor inconveniente nas suas danações. Entre a mediocridade e a insânia (com uma orla de gênio), eu preferia a insânia. Sim, antes um possesso na presidência do que os idiotas, passados, pre­sentes e futuros.
Assim pensava eu. E, de repente, vem o insano genial e co­meça a berrar: — “O tarado Nelson Rodrigues!”. Por outro lado, quando se referia à equipe da Última Hora, ele clamava: — “Ca­nalhas ! Canalhas!”. Não concedia nem uma compassiva exceção ao pessoal da faxina. Seria ótimo se, por um forte movimento inte­rior, eu passasse a achar o gênio da véspera a besta do dia seguinte.
Lembro-me de que, de vez em quando, ligava o rádio para ouvi-lo. Dentro de mim, estava aberta a ferida e repito: — a fe­rida pingava sangue. Mas o homem começava a falar e eu reco­nhecia, de mim para mim, numa amargura medonha: — “Como fala bem esse desgraçado! Que orador formidável! Rui não chegava nem aos pés! Nem Joaquim Nabuco!”. Se o meu nome surgia, eu desligava. Quantas vezes disse, lá em casa: — “Um cachorro! Só dando um tiro na boca!”. Bem que eu queria sapatear em cima da admiração como se esta fosse uma víbora.
Na manhã em que Getúlio se matou, vim para a Última Ho­ra cedinho. Passara a noite em claro, ouvindo as notícias; e pas­mara para a covardia de quase todo o ministério. Apanho o ôni­bus, na esquina de Maxwell, e viajo em pé, pendurado numa argola. Todo o ônibus ali ria do baixinho.
Parecia consumada a renúncia. Ou por outra: — não a re­núncia, mas a deposição mais deslavada. O pobre velho volta­va para São Borja. O máximo que sua humilhação inspirava era a piedade cínica da piada. O Brasil amadurecera para a voraci­dade de Carlos Lacerda. Sim, Carlos ia ser primeiro-ministro, presidente, rei; e se quisesse sairia de casa para o Catete monta­do num elefante como um rajá.
E, então, Getúlio meteu uma bala no peito. Eu o imagino apanhando o revólver. Fico tecendo minhas fantasias e imaginan­do que Vargas terá pensado na guerra civil. Ele apertou o gati­lho e, antes que morresse o som do tiro, já Carlos Lacerda caía, lá de cima, do alto de sua ambição cesariana. Sim, Lacerda estava à beira da onipotência e subitamente a perdia.
Eu estava na Última Hora quando Heron Domingues irra­diou a notícia. Sua voz era terrível. Aí é que está: — a voz de Heron Domingues transforma o fato, mesmo banal, em histó­ria. Olhei em torno. Lembro-me de que Marita Lima, redatora da Última Hora, pulou na cadeira. Perto de mim, Samuel Wainer batia à máquina e continuou batendo à máquina. Tinha qual­quer coisa de irreal aquela insensibilidade no momento em que o Brasil se preparava para matar ou para morrer.
Só depois me disseram que Samuel já sabia. Com furioso élan, estava datilografando a manchete, os títulos, os subtítulos da edição do suicídio. Para ele, para a Última Hora, era a salva­ção. Pouco depois entrava, ali, o meu caro e fraterno Albert Laurence. Disse-me, com um olhar de louco: — “Eu vou matar Car­los Lacerda!”. Todas as emissoras estavam alucinadas. Sentei-me, num canto; e pensava: — “Vai começar a guerra civil!”.
E Carlos Lacerda, que era deposto antes do poder? Eu con­tinuava sonhando com uma guerra de secessão, com os brasi­leiros bebendo o sangue uns dos outros. Mas não pode haver secessão quando existe uma unanimidade. A mesma unanimidade que pedira a cabeça de Samuel Wainer agora queria beber o sangue de Carlos Lacerda. Eu a sentia por toda parte. Carlos Lacerda era o assassino de um suicida. E a unanimidade a exibir a sua face escavada e hedionda.
Todos os jornais despejaram extras na rua. O cadáver de Getúlio ainda estava quente quando a Última Hora lançou a sua edição especial. Pode-se dizer que Vargas acabou de agonizar em nossa primeira página. O gesto suicida me aproximou de Getúlio. Eu me sentia profundamente seu irmão. Por outro la­do, queria me parecer que, no episódio, não havia apenas um morto; politicamente, Carlos Lacerda era outro cadáver.
De tarde, apanhei um ônibus. O chofer parou num jorna­leiro e pediu, forte: — “Me dá aí a Última Hora, o jornal do ho­mem!”. No meu canto, eu fazia uma série de reflexões torpes: — o jornal ia ter dinheiro; não mais pagaria seu pessoal com liquidificadores etc. etc. No mesmo ônibus, um passageiro dizia a outro que Carlos Lacerda devia se enforcar no próprio cinto.
Pouco depois, via eu e via todo o Brasil que Carlos Lacer­da era um falso defunto político. Voltaria potencializado, da ca­beça aos sapatos. Hoje, diz coisas e faz coisas absurdas. Mas an­tes o absurdo do que a imbecilidade. Outro dia, aconteceu uma que me parece lapidar. Carlos Lacerda estava num salão, senta­do no meio de cavalheiros e damas da maior cerimônia. Os pre­sentes sorviam, com inexcedível delícia, cada uma de suas pa­lavras. Ele estava num desses momentos em que o sujeito não diz um bom-dia sem lhe pingar gênio. E, súbito, baixa nele um tédio macio, insidioso, mas irresistível. Carlos Lacerda ainda con­cede três ou quatro frases mais. Boceja. Ajeita-se na poltrona, estica as pernas, põe a cabeça para trás, entrelaça as duas mãos no ventre. Todo mundo acompanha, magnetizado, cada um dos movimentos. O sono veio instantaneamente.
Sim, o sono veio, brotou, sem nenhuma preparação. E, diante das visitas, lá estava a boca aberta, e tão aberta que se via o ouro da obturação mais recôndita. Os presentes se entreolham e não sei se contrafeitos ou maravilhados. Em seguida, veio o ronco. Há ain­da alguns momentos de espera. Passada a surpresa, as visitas começavam a ver o fato na sua dimensão precisa. Eram vários casais. Cada qual se levantou e foi saindo, na ponta dos pés. Aquele ron­co deslavado parecia caracterizar o grande homem e ao mesmo tempo, profetizar o nosso De Gaulle sem esporas e sem penacho.

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