quinta-feira, 9 de abril de 2009

Capítulo 3 - A Menina sem Estrela

Claro que o sujeito, seja ele um homem de bem ou um pu­lha, é um assassino falhado. Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida. O melhor de nós já pensou em matar e já se imaginou matando etc. etc. (Aliás, envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio.) No dia em que Getúlio morreu, vi meu colega Albert Laurence irromper na Úl­tima Hora, atropelando as cadeiras como um centauro trucu­lento. Crispou a mão no meu braço e me disse, com o olhar vazando luz: — “Eu vou matar Carlos Lacerda! Eu vou matar Carlos Lacerda!”.
Admirável Laurence! Francês e, se não me engano, de Mar­selha, era de uma emotividade de modinha antiga. Seu fervor assassino durou, se tanto, 24 horas. Dois, três dias depois, vol­tou a ser o mesmo enamorado de nossos clássicos e de nossas peladas. Mas como ia dizendo: — no dia em que Getúlio se matou, milhões de brasileiros assassinaram Carlos Lacerda. Eu próprio atendi, na Última Hora, cinqüenta telefonemas. O ódio vinha aos soluços: — “Eu vou matar Carlos Lacerda!”. E eram homens, senhoras, velhinhas.
Assim fui eu com Olegário Mariano. Durante o bate-boca, ele me matou e eu a ele. E tudo por quê? O que ainda hoje me assombra e me dilacera é o motivo espantosamente imbecil. Eis o fato: — minha peça Senhora dos afogados fora interditada. Recorri ao então chefe de polícia, general Lima Câmara. Homem de temperamento forte, ele foi comigo, e com minha peça, um doce, um terno. Pedi uma comissão de intelectuais, cujo pare­cer salvaria ou não Senhora dos afogados. Indiquei nomes, que o general aceitou. Olegário fora uma das minhas sugestões. Gilberto Freyre, outra. Muito bem: — Olegário votou contra, ve­jam vocês, contra (Gilberto a favor).
Tomei um baque quando vi o parecer da comissão: — a maioria estava com a polícia. Há, no meu texto, três ou quatro cenas fortes. Fortes por absoluta necessidade psicológica e dra­mática. E ai de mim! O nosso literato age e reage diante do se­xo como uma Bernarda Alba. Sofrendo na carne e na alma, dei uma entrevista feroz e fiz uma alusão grosseira a Olegário. De noite, ele bate o telefone para minha casa. Começou assim: — “Nelson, você é um cafajeste!”. Por minha vez, subi a serra: — “Cafajeste é você!”.
O resto veio numa progressão fulminante. Falamos em “ti­ro na boca”, em “te quebro a cara” etc. etc. Hoje, com Olegário morto, confesso: — eu não tinha razão. Olegário só podia votar contra. Ele seria um pulha se admitisse tal peça. Eu era o anti-Olegário, Senhora dos afogados era a anti-Olegário. Imaginem que, na peça, um personagem fazia a apologia dos “eczemas da avó”. Ora, o único, na comissão, sem preconceito contra eczema era Gilberto Freyre. Dois anos antes, a polícia interditara ou­tro original meu: — Álbum de família. E o dr. Alceu Amoroso Lima assumiu a corajosa defesa da polícia. Sim, o Tristão aplau­diu a polícia e quase pediu bis como na ópera. Também estava certo. Eu sou, e serei, do berço ao túmulo, o anti-Alceu.
Saí do telefone, exausto de odiar. Mas, por toda a noite, minha casa ficou ressoante do berro: — “Eu te matei a fome! Eu te matei a fome!”. Trinta e tantos anos já passaram. Eis o que me pergunto: — por que dei a tal entrevista e por que não aceitei um voto de uma honradez exemplar? Não quis ver que aquele sujeito ululante era o mesmo que há trinta e tantos anos estava no cais; e me carregou no colo; e nos deu mesa, cama e teto. Doce poeta! Foi um dos homens mais bonitos e mais ama­dos do Brasil. Mesmo velho, ainda inspirava paixões. Disse que me matara a fome. Então, eu penso em Os Maias. Você me deu, sim, uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Perdão, Olegário, eu sou uma boa besta.
Da casa do poeta não me lembro de nada. Minto: — me lembro de um pé de jambo, junto ao muro, e só. Passamos lá vinte dias, um mês e, depois, fomos morar na rua Alegre, ao lado de uma farmácia. Aluguel de cento e vinte mil-réis por mês. Amigos de meu pai fizeram uma vaquinha para comprar um mí­nimo de mobiliário.
Eu me lembro do nosso jantar, na nova casa. Veio uma mar­mita de pensão e toda a família se reuniu em torno de um cai­xote. De repente, rompe, no gramofone do vizinho, a valsa do “Conde de Luxemburgo”. Foi com Franz Lehar que comecei a ouvir o mundo. A partir da opereta, tudo começou a falar. Eu escutava. Ouvia a voz do meu pai, de minha mãe; os galos can­tavam; os passarinhos. Instalava-se uma fauna misteriosa e tris­te de ruídos noturnos. Uma vez, acordei de madrugada e fiquei escutando: — gargalhadas cínicas atravessavam a noite.
Nos primeiros tempos de Aldeia Campista não tínhamos em­pregada. Minha mãe precisou ir para a cozinha, para o tanque; fazia todo o serviço, varria, espanava. Milton e Roberto, os mais velhos, tomavam conta dos menores. De vez em quando, a vi­zinha tocava o “Conde de Luxemburgo”. E então minha mãe valsava, sozinha. E, nesse momento, ela se dilacerava de felici­dade. Continuei descobrindo as coisas: — o céu, a folha de tinhorão, a morte e o sexo. Uma das minhas lembranças de Aldeia Campista é a seguinte: — manhã ou tarde de chuva. Eu estava olhando um pé de tinhorão plantado numa lata de banha. Era garoto de pé no chão e calça furada. Fiquei, ali, um tempo infinito, espiando o tinhorão bebendo chuva. Uma gota caía em cima da mesma folha, com obtusa monotonia. E aquilo me deslumbrava.
Mas o que gostaria de contar é, se assim posso dizer, o meu primeiro feito erótico. Como aconteceu, com quem aconteceu ou quando aconteceu, não sei. Palavra de honra, até hoje não sei. Um dia minha mãe estava na cozinha, quando entra uma vizinha, uma tal de d. Maria. Dava-se muito lá em casa, empres­tava sal, açúcar, farinha, e era gorda como uma viúva machadiana. Maria chegou ventando fogo por todas as narinas. Entre parênteses, a santa senhora tinha uma filha única, menor do que eu, de bracinhos diáfanos e um respiro de passarinho.
A vizinha foi entrando e dizendo tudo:
— D. Ester, qualquer filho seu pode entrar na minha casa. Menos o Nelson. Desculpe, mas o Nelson, não.
Eu, não. Vejam vocês: — hoje, alguém poderia dizer, sem violentar a verdade: — “Proibido de entrar em casa de família aos quatro anos de idade”. Mas o que é que eu fiz? Estou vendo a menina, que seria minha vítima, com sua lancinante fragilida­de. Ainda por cima, tinha asma; e, nas crises, seus olhos se tornavam estrábicos de asfixia. Se Deus entrasse na minha sala e perguntasse: — “O que é que você fez? Conta pra mim. O que é que você fez?”, continuaria respondendo: — “Não sei”. De­ve ter sido um ultraje, uma coisa iníqua, abominável, à altura de tamanha indignação materna. Seja como for, o pecado é an­terior à memória.
Toda infância é varrida de tias. Umas mais velhas, outras mais moças. Muitas vezes, eu chegava em casa e caía sobre mim aquela saraivada de tias. Quando fui para a escola pública, uma tia me levava, outra me trazia. Mas não era bem isso que queria dizer. O que queria dizer é que, até certa idade, o menino tem uma certa semelhança com o Demétrio, pai dos Karamazov. Co­mo se sabe, para o velho bandalho, não há mulher feia. Qual­quer uma tem um charme, uma graça, uma beleza, secreta ou ostensiva. Eu, menino, até os sete anos, também via as mulhe­res sem nenhum cuidado seletivo. Achava todas lindas, fabulo­sas, fossem brancas, pretas, tordilhas, gordas etc. etc. A gravi­dez parecia-me de um gosto esplêndido, com aquele barrigão.
Até que, aos sete anos, vi, pela primeira vez, uma mulher nua. Aquilo ia influir por toda a minha vida.

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