domingo, 26 de abril de 2009

Capítulo 20 - A Menina sem Estrela

Disse eu que, durante os três meses de febre (febre e disp­néia pré-agônica), não recebi uma única e escassa visita. Mas já retifico. Realmente, durante noventa noites e noventa dias, ti­ve três visitas, não mais, três visitas. Sim, três amigos bateram à minha porta. Um, foi o ex-contínuo, hoje sargento da Aero­náutica; outro, Paschoal Carlos Magno; e o terceiro.
O Pinheiro Júnior lá esteve profissionalmente. Não via em mim o amigo, o companheiro, o moribundo. Eu era o assunto, a fotografia, a chamada na primeira página. Mas e o terceiro, exis­tiu mesmo o terceiro? Já quero crer que os três eram dois. Bem me lembro da tarde em que o Paschoal apareceu, num chapa branca lindo. Ele trabalhava com Juscelino; e tinha automóvel oficial com chauffeur, libré, o diabo. Vira a reportagem sobre mim na Última Hora.
Eu aparecera, na primeira página, de barriga aberta. Eram várias fotografias e todas de um mau gosto cruel, abominável. Alguém veio me dizer que tinha um ministro lá fora. Era o Pas­choal, o ministro. E quando o vi, me veio o sentimento de gra­tidão selvagem. Para mim, que estava no fundo de uma cama, um simples bom-dia era um bem lancinante. Paschoal passou comigo uma hora ou duas, sei lá. E, quando saiu, fiquei tecendo as fantasias mais lúgubres. Eis o que me passava pela cabeça: — “Talvez o Paschoal não me veja nunca mais. E, se eu morrer, pelo amor de Deus, não me enterrem em gaveta. Tudo, menos gaveta”.
Também não queria um túmulo lá em cima do morro. No alto, não. Quem iria subir tamanha escadaria para me levar flores? Mas deixemos Paschoal e o São João Batista. Não sei se o ex-contínuo me visitou antes de Paschoal ou depois. Eu não o via há séculos. Ele trabalhava comigo em Ponce & Irmão, na altura de 1933. Os Ponce representavam a rko Rádio e eu fazia-lhes o noticiário dos filmes. E lá o meu visitante era contí­nuo. Vira também o meu retrato de barriga aberta.
Vejam como valorizo e dramatizo as duas visitas. Naquele momento, elas significaram muito para mim e, eu diria mes­mo, significaram tudo. Quando ouço falar mal de Paschoal Carlos Magno, imagino: — “Foi me visitar”. E isso que pare­ce pouco é tanto, tanto. Quanto ao ex-contínuo, agora me lembro do seu nome: — é Ademar, isso mesmo, Ademar. On­de quer que esteja, Deus o abençoe, a ele e ao Paschoal.
E, de repente, a minha rua começou a sussurrar: — “É câncer, é câncer”. Digo “minha rua” porque não tenho co­mo individualizar. Eram tantos os implicados no mexerico. E não pensem que minha rua era pior do que as outras. Já contei o que aconteceu na minha infância. Não sei se a rua D. Zulmira, ou Luiza, ou Maria (era vizinha da rua Alegre) induziu uma senhora ao suicídio. Notem bem: — a rua ma­tou uma pobre adúltera (e talvez nem fosse adúltera).
O certo é que a rua amou o meu câncer. A Assistência parava lá de vez em quando, com as janelas escancaradas, eu me submetia a transfusões sucessivas. E, certa vez, sofri uma punção horrenda. Lembro-me de tudo. Sentei-me, seminu, de costas para o médico. E, então, ao lado do clínico Dauro Mendes, o Hugo Cota dos Santos enfiou-me, entre duas costelas, uma agulha enorme. O que senti foi, exatamente, a dor de uma punhalada. Nas costas e entre duas cos­telas. Nem gemi. Eis a verdade: — naqueles três meses, eu aceitava a dor com uma sujeição fatalista e alvar. Dr. Hugo, com pena, remorso, pergunta: — “Você agüenta outra vez?”. Respondi: — “Agüento”. Houve uma nova tentativa e uma terceira sem um gemido.
Mas o câncer explicava a febre, as transfusões, a vista turva, as pernas bambas e todos os meus sintomas. Lembro-me de que, um dia, fui me olhar no espelho. Era como se, por equívoco, o espelho estivesse retransmitindo outra ima­gem. Minhas olheiras eram tão fundas que pareciam feitas de rolha queimada. Só o vilão de cinema mudo tinha nos olhos aquele halo negro.
Vamos e venhamos: — a hipótese do câncer era extremamen­te persuasiva. E Samuel Wainer deve ter sabido. Deve, não: — soube. Soube e que fez ele? Foi me visitar? Apareceu lá em casa? Chorou por mim? Ou, por um momento, crispou-se de pena? Eu era fundador da Última Hora. Desde o primeiro dia, eu me en­tregara ao jornal. Passava dias e noites na redação, trabalhando como um louco. Durante a campanha de Carlos Lacerda, sofri ultrajes inenarráveis. E que fez Samuel pelo meu falso câncer?
Onde estava a sua amizade por mim? Eis o que eu me per­guntava: — do mesmo modo que é um impotente para o ódio, será também impotente para o amor? Digo amor porque amiza­de é amor. Muitos anos depois, quando morreu meu irmão Má­rio Filho, dizia-me, no caminho do cemitério, Carlos Heitor Cony: — “Tive amor por Mário”. E Samuel não saberia amar o companheiro que agoniza? Que morre?
Não foi me visitar nunca. Não me deu um telefonema per­guntando: — “Já morreste?”. Não me ofereceu um níquel, um vale, nada. E quando soube do câncer, reagiu assim: — man­dando descontar as minhas férias; e já se preparava para sus­pender o salário. Com um suposto câncer, eu já não seria pro­fissionalmente válido. Portanto, rua, rua. Disse ele, certa vez, se não me engano a Edmar Morel, que não podia se amarrar às suas eventuais gratidões.
Pode parecer que, ao contar o episódio, eu o esteja chaman­do de pulha. Mas não é bem assim, nem as coisas têm esta sim­plicidade estúpida. Não. Ele agiu assim comigo; não teve por mim esse mínimo de compaixão que se tem por um cachorro atro­pelado. Mas foi, em outros casos, de uma bondade perfeita, irretocável. Seria mentira apresentá-lo como um canalha integral.
Por exemplo: — o que Samuel fez por sua primeira mulher, Bruma Wainer. Estavam separados; não restara nenhum víncu­lo do matrimônio falhado. E nós sabemos que, normalmente, o homem e a mulher são dois ressentidos contra o ex-amor. Um dia, Bruma cai doente. Câncer. Eu não fui testemunha de nada. Mas o que me dizem é que ninguém foi mais doce, mais solidá­rio, mais compassivo e de mais funda e infeliz ternura. Eu me lembro de Samuel no dia em que Bruma morreu. Apareceu na redação. Estava transfigurado de compaixão e de amor. Andan­do de um lado para outro, dando ordens de serviço, era um co­ração atormentado e puro. E houve um momento em que me pareceu pálido e varado de luz como um santo.

Nenhum comentário: