quarta-feira, 29 de abril de 2009

Capítulo 23 - A Menina sem Estrela

O espantoso no assassinato de Roberto é que não houve ódio. Ele não foi odiado em nenhum momento. Não foi o ódio que apertou o gatilho (e era um revólver pequenino, sim, um revólver liliputiano, que mais parecia de brinquedo). Não hou­ve ódio nem irritação, repito, nem irritação. Eu estou ouvindo a voz: — “Dr. Mário Rodrigues está? Dr. Mário Rodrigues está?”.
Estou ouvindo a voz e, pior, lembro-me até do perfume. Trinta e sete anos depois, eis-me aqui pensando: — “Matar sem paixão, sem nenhuma paixão, simplesmente matar e nada mais”. Podia ser Mário Rodrigues, pai, ou um dos filhos, ou filha, ou minha mãe. (E a polidez, a quase humildade da pergunta: — “O senhor podia me dar um minuto de atenção?”. Roberto ergueu-se: — “Pois não” — faz a volta na mesa. Mas já contei isso.)
Outra presença, daquela tarde: — Carlos Cavalcanti, hoje crítico de arte, professor, ensaísta. Mas como ia dizendo: — Ro­berto estava deitado no soalho. Vários telefones ligando para a Assistência. O pessoal da serraria, ao lado, subira; redação in­vadida. Naquele momento, o nosso gerente, que almoçava com meu pai, no Leblon, ligava para a Crítica. Alguém berrou: — “Roberto levou um tiro!”.
Como era jornal, a Assistência foi instantânea. O bom ne­gro Quintino, com o seu olho vazado, dizia: — “Eu levo no co­lo! Deixa que eu levo no colo!”. A maca estava ali. E volto ao meu espanto: — não existia a figura do criminoso; estava ali, e era como se não existisse. Roberto não teve um olhar para ela, ou uma palavra, nada.
(A rua do Carmo tinha então uma delegacia. Veio de lá um soldado.) Quintino curva-se para carregar Roberto. Meu irmão pede: — “Cuidado, cuidado”. Eu tinha medo das brutais, inapeláveis hemorragias internas. E o crioulo Quintino levou Roberto nos braços e, com a ajuda de um e de outro, pôs o corpo na maca. Vozes dizendo: — “Sai da frente! Sai da frente!”.
(Ah, o Quintino era um crioulão imenso. Com menos bar­riga, e nu, seria um plástico, elástico, lustroso escravo núbio de Hollywood. Sempre me impressionara, sempre. Desde menino que todo cego de um olho só me fascina. Eu achava que esse olho ferido era uma marca de funda, sofrida bondade.)
Lá foi Roberto de maca. Imediatamente depois, saía a cri­minosa, levada pelo soldado. E eu esperava alguém, o meu pai, ou um dos meus irmãos, para ir ao pronto-socorro. Súbito, entra na redação o contínuo Evaristo. Subira as escadas, atropelando quem subia e quem descia. Chegou lá em cima, espalhando rútilas patadas como um centauro. Veio para mim; atirou-me o berro triunfal: — “Mataram o Souza Filho! Mataram o Souza Filho!”.
Na sua euforia, tinha um bolinho de espuma do canto do lábio. Quase o agredi. Berrei-lhe: — “Sua besta! Roberto levou um tiro! Não interessa Souza Filho!”. Evaristo era contínuo da noite. Viu morrer sua notícia; e sua cara tomou a expressão de um descontentamento cruel. Sem uma palavra, retirou-se para um canto. E, lá, num silêncio ressentido, ia tirando o paletó, humilhadíssimo. O paletó cheira a suor velho.
Era verdade. Quase no mesmo momento em que Roberto era ferido, o deputado Souza Filho caía, pouco adiante, assassi­nado. Morreu, se não me engano debaixo de uma cadeira ou mesa (não sei, ao certo; e talvez a mesa ou a cadeira seja uma alucinação da memória). E o que senti, ao receber a notícia dos crimes simultâneos, foi um despeito cruel. Eu queria que, na­quele dia, não acontecesse nada; e que toda a cidade só falasse e só vivesse a tragédia da Crítica. E a coincidência me deu uma ira impotente e absurda. Eu pensava, secretamente: — por que não matar Souza Filho na véspera ou dois dias antes, ou no dia seguinte, ou três dias depois?
Entra meu pai. Fizera a viagem, do mais profundo Leblon até a rua do Carmo. O carro veio, pelo caminho, estourando todos os sinais. E meu pai entrava, mais gago do que nunca. Ah, meu pai. Eu o amava mais por ser gago e direi ainda: — desde menino, acho que o gago está certo e os outros errados. (Coisa curiosa! Tenho 54 anos e jamais encontrei uma mulher gaga.) Meu pai entrou na redação e começou a dizer o que iria repetir até morrer: — “Essa bala era para mim”.
Esquecia-me de contar que quase fui na ambulância com Roberto. Mas um medo me travou: — se ele morresse na via­gem? Se eu o visse morrer? Eu e ele sozinhos? Pedi que outro fosse no meu lugar. Faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “Quem foi com Roberto na ambulância?”. Depois do meu pai, chegaram Milton e Mário. Chamei um e outro: — “Vamos, vamos”. Apanhamos um táxi na esquina.
Havia uma dúvida no pronto-socorro: — opera ou leva para uma casa de saúde? Meu pai deu a ordem pelo telefone: — “Ope­ra já”. Eu, Milton e Mário fomos para a varanda que se debruçava sobre o Campo de Santana. Parece incrível que se possa odiar uma paisagem. Pois sou, até hoje, um ressentido contra o Campo de Santana. Seus pavões foram expulsos. Mas olho, hoje, sem ne­nhuma bondade, seus gatos vadios e suas furtivas cutias.
Roberto fora operado; sobrevivera. E, então, o pronto-socorro se encheu de amigos. Um deles era Gondin da Fonse­ca. Agarrou Milton no corredor. E quando soube que era um tiro na barriga, explodiu em soluços: — “Ele vai morrer! Ele vai morrer!”. Naquele tempo, bala na barriga era quase a morte certa. Alguém trouxe as últimas edições. Os jornais davam des­taque, sim, à tragédia de minha família. Mas as manchetes eram de Souza Filho. E as letras garrafais no alto das primeiras pági­nas ofendiam e humilhavam a nossa desgraça.
Passei a noite em claro. De vez em quando, vinha para a varanda. Roberto passava bem. Perguntavam: — “Tem febre?”. Não, não tinha febre; ou a febre era a mínima. De qualquer lu­gar do hospital, eu ouvia os pavões estraçalhando no ar suas gar­galhadas. E não só os pavões. Havia, no Campo de Santana, to­da uma fauna triste e misteriosa de ruídos. Hoje, estou certo de que muito do que ouvi nas duas noites era pura alucinação au­ditiva. Na minha insônia, pensava: — “Se não fosse o assassina­to de Souza Filho, as manchetes seriam de Roberto”. Essa fixa­ção idiota, ou vil, estava encravada em mim.
Muitos e muitos anos depois, eu visitei o túmulo do meu irmão. Uma cruz pobre, e por baixo, no mármore frio, o nome — Roberto Rodrigues. Não me ajoelhei com vergonha de me ajoelhar. E pensei que não há nada que fazer pelo ser humano. Disse, de mim para mim: — “O homem já fracassou”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Passando para conhecer,te confesso que não li os capítulos todos, mas amei o primeiro.