sexta-feira, 10 de abril de 2009

Capítulo 4 - A Menina sem Estrela

Meu Deus, se alguém me perguntasse o que há de mais pa­tético no ser humano, daria a seguinte resposta fulminante: — “A nudez”. Para mim, não há nudez intranscendente. Explica­rei, mais adiante, por que um vago decote pode comprometer ao infinito. Mas o que me importa, de momento, é contar o gran­de espanto de minha infância.
Recentemente, no Correio da Manhã, o Paulo Francis fa­lava na “demência insuportável” de Dostoievski. De acordo, e daí? Outro “demente insuportável”, e de rasgar dinheiro, se­ria Tolstoi. E ainda outro, que também podia ser amarrado num pé de mesa, o Shakespeare de Ricardo III. Só o Pedro Calmon não é demente. (Estou divagando outra vez, e desculpem.) Eis o que eu queria dizer: — a palavra “demência” levou-me a uma loucura antiga, nada literária e, até, analfabeta. Vejamos. Já contei umas dez vezes que minha família morava na rua Alegre, Aldeia Campista, ao lado de uma farmácia. Na esquina, à esquerda da minha casa, residia um parente do marechal Hermes da Fonse­ca. E, ao lado, havia uma cabeça-de-porco. Morava aí, com a mãe, por sinal lavadeira, uma moça, dos seus 25, trinta anos. A velha era portuguesa e a filha, não sei.
Era a doida da rua, do bairro. Não gritava, não agredia nem falava. Ficava no quarto, dia e noite; e eu ouvia dizer que “to­mava banho de bacia”, com a mãe ensaboando, esfregando e berrando: “Fica quieta, fica quieta!”. Dizia-se também que a de­mente tinha horror de banho (também não sei).
Em torno dessa loucura, fora montado todo um folclore; e, de vez em quando, vinha uma comadre e acrescentava mais uma fantasia. Certa vez, ouvi uma conversa de vizinhas. Uma das mexeriqueiras contou que a louca, nas noites quentes (ou frias, sei lá), tirava a roupa, tudo. E ia assim, nua, até de manhã. De manhã, a portuguesa acordava e metia-lhe o chinelo.
Eu ouvi a história, de olho grande. Por muitos dias e mui­tas noites aquilo não me saiu da cabeça. Imaginava a nudez in­sone, nudez delirante, rodando pelo quarto.
Agora vem o tal grande espanto da minha infância. Eu já fi­zera sete anos, e estava na escola pública. Alguns alunos leva­vam merendas suntuárias. Lembro-me de um deles comendo pão com ovo. Pão com ovo! E a gema pendia-lhe do beiço, como uma baba amarela. Aquilo me apunhalava de inveja. Mas voltan­do à filha da lavadeira: — eu sentia pela demente um certo en­canto apavorado. Em casa, as tias avisavam: — “Não vai lá! Não vai lá!”. Mas eu escapulia e, com pouco mais, estava brincando com os meninos da casa de cômodos. Até que tomei coragem.
Tomei coragem, passei a mão no trinco e empurrei a por­ta. Passei lá um segundo fulminante. Mas vi. A louca estava no fundo do quarto, encostada à parede — e nua. Completamente nua. Essa imagem de nudez acuada está, ainda agora, neste mo­mento, diante de mim. Não esperei mais. Corri. Entrei em casa tão branco que alguém perguntou: — “O que é que você tem, menino?”. Disse, se é que disse: — “Nada, não”. Meti-me na cama; debaixo do lençol, tiritava de vergonha, pena, medo e, também, nojo. De repente, o mundo se enchia de nus. Cada qual tinha a sua nudez obrigatória. As donas da rua, se tirassem a rou­pa toda, estariam nuas como a filha da lavadeira.
Isso aconteceu em 1918, por aí. Um domingo, trinta e tan­tos anos depois, estou no portão. E ouço uma vizinha pergun­tar a outra vizinha, de janela a janela:
— Sabe quem morreu? A Marilyn Monroe.
— Morreu?
— O rádio está dando.
— Desastre?
— Suicídio.
Ora, quem se mata tem, automaticamente, o meu amor. E, além disso, prefiro as neuróticas (mais tarde direi por quê). Saí do portão, fui comprar cigarros e só pensava na suicida. Na sua adolescência, Marilyn posou nua para uma folhinha. E esse impudor mercenário foi, ao mesmo tempo, de uma fulminante efi­cácia promocional. Do dia para a noite, ela se tornou célebre: — célebre e nua, célebre porque se despira. Daí para Hollywood, a distância seria um milímetro.
A folhinha correu mundo. Foi desejada em todos os idio­mas. Nos botecos de Bombaim, ou do Cairo, ou de Cingapura, os paus-d’água sonhavam com o frescor implacável de sua nu­dez. Ao mesmo tempo, ela se tornava uma grande atriz. Trabalhou com sir Laurence Olivier. Não sei se antes ou depois, casou-se com Arthur Miller. Pouco importava o marido, o homem; o que a fascinou foi o grande dramaturgo (falso grande dramatur­go e pulha da pior espécie).
Tudo espantosamente inútil. Se ela fosse nomeada rainha da Inglaterra, ou promovida a madame Curie, ou carregada num andor — daria no mesmo. Nenhuma coroa, nenhuma estrela, nenhum manto — nada a salvaria de sua própria nudez.
Até que, num sábado, ou num domingo, ela se matou. A besta do Arthur Miller não entendeu nada. Fez uma peça infa­me. De seu texto, salva-se apenas uma única e escassa passagem. É quando Marilyn Monroe, de quatro, berra: — “Eu queria ser maravilhosa! Eu queria ser maravilhosa!”. Para morrer, Marilyn despiu-se como na folhinha. E morreu nua. Morreu folhinha.
Quero que vocês me entendam. São dois nus justapostos: — a demente de Aldeia Campista e a estrela de Hollywood. Essa relação é de uma nitidez apavorante, sem nenhum mistério. Não importa que uma seja doida e a outra não. Ou por outra: — que uma seja doida e a outra também. Na minha memória, uma e ou­tra estão unidas como se fossem (Deus me livre) duas lésbicas. E há uma terceira figura que acho igualmente desesperadora.
A do biquíni. Sou um obsessivo e houve alguém, se não me engano, o Cláudio Mello e Sousa, que me chamou de “flor de obsessão”. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao ho­mem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obses­sões. Pois o biquíni é o meu cotidiano espanto. Todos os dias, o meu táxi vai do Forte ao Leme, seguindo a mesma orla de um­bigos. Não sei qual das três é a mais humilhada: — a louca da rua Alegre, Marilyn Monroe ou a moça do biquíni. Diria que a atriz merece a desculpa apiedada do impudor mercenário. Pos­so até insinuar que foi a ordem capitalista que a despiu. Mas o biquíni é a folhinha de graça, a folhinha não gratificada, a folhi­nha sem cachê.
Sei que, falando assim, lembro, talvez, o pastor de Chuva, antes do pecado. Não faz mal. Vivo a dizer que considero o ridículo uma das minhas dimensões mais válidas. O medo do ridí­culo gera as piores doenças psicológicas. Mas falei, falei, e não estava dizendo o essencial. Ouçam: — Marilyn Monroe morreu porque se despiu sem amor. E aí está a palavra: — amor, amor. Foi o remorso, foi a humilhação da nudez sem amor. Só o ser amado tem o direito de olhar um simples decote. É apenas um decote, mas só o ser amado pode olhar a linha nítida, tão nítida, que separa os seios.

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