sábado, 11 de abril de 2009

Capítulo 5 - A Menina sem Estrela

Ontem, depois da missa, uma senhora me pedia, em voz baixa: — “Não escreva mais sobre velórios”. Vejam vocês: — o presente capítulo foi escrito no sábado da tempestade. No dia seguinte, meu irmão Paulo Rodrigues morria, com toda a família, no desabamento de Laranjeiras. Suspendi as Me­mórias. Só ontem é que fui reler o texto abaixo, disposto a rasgá-lo. Era uma meditação fúnebre e desesperada, quase pro­fética. E, então, resolvi publicar tudo, sem cortar uma vírgula.

Um dia — há coisa de uns seis meses — meu irmão Paulo Rodrigues veio me dizer: — “Não perde um filme que estão le­vando aí, italiano. Tem um velório genial”. Dois ou três dias depois, tive uma tarde livre. E fui ver o tal filme italiano. Era uma história de bandido, truculenta, e sem nenhum pudor do dramalhão. Algumas de suas peripécias estavam a um milímetro, se tanto, do nosso Vicente Celestino. Todavia, o grande mo­mento foi mesmo a morte do herói. Houve um pânico na platéia, quando ele apareceu, na mesa do necrotério — e cravejado de balas. E, súbito, invade a tela a mãe do bandido.
Qualquer dor tem seu repertório de gritos. Mas ninguém, em nenhum idioma, berra, soluça e uiva como a mãe daquele mor­to. Era siciliana e aí está dito tudo. Ao ver o cadáver, esganiçou gritos jamais suspeitados. Na minha cadeira, assombrado, confes­so: — tive uma sensação de deslumbramento. Há muito tempo não via uma dor tão feroz. Mas foi na cena subseqüente que o di­retor do filme entoou o dó-de-peito que trazia no bolso do colete.
Aquela mãe devoradora começou beijando o dedo grande do pé. Ou por outra: — não beijou apenas, o que seria pouco para a sua fome. Realmente, ela sorvia os dedos, um por um, como aspargos. A boca ativa, insaciável, continuou beijando: — a sola do pé, o calcanhar, as canelas. A imagem, monotonamente descritiva, não deixou escapar nada. Era uma dor vio­lentada, exagerada. A própria tela ampliava tudo, dando a cada esgar uma dimensão miguelangesca.
E, de repente, alguém ri, em falsete, na platéia. Logo, ou­tros focos de riso surgiram, aqui e ali. Na treva, eu, sério, fazia a seguinte e humilhante reflexão: — “Eu não serei beijado as­sim”. Mas por que o riso, eis a pergunta, por que o riso? Talvez porque a grande dor gesticule e vocifere como a canastrona do velho teatro. Só eu não achei graça. Eu e uns poucos mais. Com a cena do necrotério, deflagrou-se, em mim, um novo movi­mento proustiano, um novo processo regressivo.
Voltei à rua Alegre. Enquanto a siciliana beijava os pés do filho, eu era, novamente, menino de seis, sete anos. Era assim que se chorava nos velórios antigos. Em 1917, 18, 19, os enter­ros saíam mesmo de casa. Não era como agora. Agora despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial. Tu­do era familiar e solidário: — os móveis, os jarros, as toalhas e, até, as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a ci­dade. Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Nin­guém mais cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto.
Mas havia o chapéu e repito: — tínhamos o chapéu. Pode parecer pouco, mas é muito. Sei que o nosso tempo não valori­za a morte e a respeita cada vez menos. Por vários motivos e mais este: — falta-nos o instrumento da reverência, que é o cha­péu. Era lindo ver toda a cidade cumprimentando um caixão, mesmo de quinta classe. Dirá alguém que a inovação da capeli­nha mudou tudo. A morte não mais desfila como um préstito. Há capelinhas, dentro e ao lado do cemitério. Mas o chapéu in­fluía, sim, em nossa relação com a vida eterna.
Um dia, em 1917, eu soube que se morria. Nem todos, cla­ro. Eu, papai, mamãe, meus irmãos não morreríamos, nunca. Só os outros. Às vezes, tento fazer uma antologia de mortos, dos meus mortos. O primeiro, ou a primeira, foi a menina da febre amarela. Ou por outra: — não foi a menina. Houve antes, um rapaz da rua, triste, asmático e cheio de espinhas na cara. Guardei o seu diminutivo: — Carlinhos. Todas as tardes, eu o via passar, de braço, com a noiva. Os dois iam de uma esquina a outra esquina. Lembro-me de que, certa vez, Carlinhos pagou-me sorvete de casquinha. Bem. E o fato é que, lá uma vez, o rapaz brigou com a menina. O motivo não sei, talvez ciúmes.
E ele a avisou:
— Olha. Amanhã, você vai ao meu enterro.
Ou a menina era geniosa ou não acreditou. Largou-o na cal­çada. Carlinhos saiu dali para a farmácia. Por acaso, eu estava lá, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Sem­pre que me via, ele passava a mão pela minha cabeça e me chamava de “batuta”. Desta vez, nem me olhou.
Disse para o homem da farmácia:
— Vou viajar. Vou fazer uma viagem.
Tomou o veneno, junto ao balcão. O homem da farmácia olhou sem entender nada. O freguês adernou e caiu, com as duas mãos no ventre e as entranhas em fogo. Ainda me pergunto se foi pó, líquido ou pastilha. Mas não importa. O farmacêutico começou a gritar. Apareceu, logo, uma multidão. Alguém me enxotou com uma palmada:
— Vai embora, anda, sai daí!
Foram avisar, correndo, à mãe do rapaz e à noiva. Quan­do, porém, as duas chegaram, ele estava morto. Lá de casa — ao lado da farmácia — eu ouvia os ataques.
Hoje, graças à capelinha, a dor tem uma disciplina, uma po­lidez, uma cerimônia prodigiosa. Não há mais ataques. Só na Zo­na Norte mais profunda, acima da Tijuca, talvez sejam ainda pos­síveis os velórios esganiçados, convulsivos.
Volto à farmácia. Meus irmãos maiores contaram, depois, tudo o que aconteceu. Primeiro, veio a mãe; depois, a noiva. A mãe entrou, atropelando os presentes. Atirou-se sobre o morto que lá estava, quieto, de pernas abertas, estirado no ladrilho. Por cima do filho, sacudia-o como se o agredisse, como se o odiasse. E, depois, rompe a noiva.
Vozes pediam:
— Não faça isso! Calma, minha senhora! Segura, aí, segura!
Os homens queriam arrastar uma e outra. A mãe, professo­ra e viúva, escouceava. A noiva meteu as unhas na cara de al­guém. E, finalmente, deixaram as duas em paz. Todos ficaram ali, parados, vendo aquele defunto possuído por duas mulheres. A professora montara no filho, com os dedos cravados no seus cabelos frios. E a noiva atracou-se com as pernas e os sapa­tos do ser amado. Estava, ali, com uma antecipação de quase quarenta anos, o puro Bandido Giuliano.
Mas como ia dizendo: — a noiva beijou os sapatos e, em seguida, os tirou e, não contente, arrancou as meias para beijar os pés nus e gelados.
Assim foi um suicida que me revelou a morte, e eu quase dizia: — foi um suicida que me ensinou a morrer. Quando Ge­túlio se matou, pensei na grande cena da farmácia. Imaginei que alguém, como a noiva antiga, podia beijar os seus sapatos ou, antes que o calçassem, os seus pés sem meias. Não me falem da carta-testamento, tão secundária diante do tiro no peito.
Bem me lembro do justo momento em que tive a notícia, pelo rádio, na voz de Heron Domingues. Getúlio morto. De re­pente, senti que Deus prefere os suicidas.

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