Ontem, depois da missa, uma senhora me pedia, em voz baixa: — “Não escreva mais sobre velórios”. Vejam vocês: — o presente capítulo foi escrito no sábado da tempestade. No dia seguinte, meu irmão Paulo Rodrigues morria, com toda a família, no desabamento de Laranjeiras. Suspendi as Memórias. Só ontem é que fui reler o texto abaixo, disposto a rasgá-lo. Era uma meditação fúnebre e desesperada, quase profética. E, então, resolvi publicar tudo, sem cortar uma vírgula.
Um dia — há coisa de uns seis meses — meu irmão Paulo Rodrigues veio me dizer: — “Não perde um filme que estão levando aí, italiano. Tem um velório genial”. Dois ou três dias depois, tive uma tarde livre. E fui ver o tal filme italiano. Era uma história de bandido, truculenta, e sem nenhum pudor do dramalhão. Algumas de suas peripécias estavam a um milímetro, se tanto, do nosso Vicente Celestino. Todavia, o grande momento foi mesmo a morte do herói. Houve um pânico na platéia, quando ele apareceu, na mesa do necrotério — e cravejado de balas. E, súbito, invade a tela a mãe do bandido.
Qualquer dor tem seu repertório de gritos. Mas ninguém, em nenhum idioma, berra, soluça e uiva como a mãe daquele morto. Era siciliana e aí está dito tudo. Ao ver o cadáver, esganiçou gritos jamais suspeitados. Na minha cadeira, assombrado, confesso: — tive uma sensação de deslumbramento. Há muito tempo não via uma dor tão feroz. Mas foi na cena subseqüente que o diretor do filme entoou o dó-de-peito que trazia no bolso do colete.
Aquela mãe devoradora começou beijando o dedo grande do pé. Ou por outra: — não beijou apenas, o que seria pouco para a sua fome. Realmente, ela sorvia os dedos, um por um, como aspargos. A boca ativa, insaciável, continuou beijando: — a sola do pé, o calcanhar, as canelas. A imagem, monotonamente descritiva, não deixou escapar nada. Era uma dor violentada, exagerada. A própria tela ampliava tudo, dando a cada esgar uma dimensão miguelangesca.
E, de repente, alguém ri, em falsete, na platéia. Logo, outros focos de riso surgiram, aqui e ali. Na treva, eu, sério, fazia a seguinte e humilhante reflexão: — “Eu não serei beijado assim”. Mas por que o riso, eis a pergunta, por que o riso? Talvez porque a grande dor gesticule e vocifere como a canastrona do velho teatro. Só eu não achei graça. Eu e uns poucos mais. Com a cena do necrotério, deflagrou-se, em mim, um novo movimento proustiano, um novo processo regressivo.
Voltei à rua Alegre. Enquanto a siciliana beijava os pés do filho, eu era, novamente, menino de seis, sete anos. Era assim que se chorava nos velórios antigos. Em 1917, 18, 19, os enterros saíam mesmo de casa. Não era como agora. Agora despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial. Tudo era familiar e solidário: — os móveis, os jarros, as toalhas e, até, as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade. Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Ninguém mais cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto.
Mas havia o chapéu e repito: — tínhamos o chapéu. Pode parecer pouco, mas é muito. Sei que o nosso tempo não valoriza a morte e a respeita cada vez menos. Por vários motivos e mais este: — falta-nos o instrumento da reverência, que é o chapéu. Era lindo ver toda a cidade cumprimentando um caixão, mesmo de quinta classe. Dirá alguém que a inovação da capelinha mudou tudo. A morte não mais desfila como um préstito. Há capelinhas, dentro e ao lado do cemitério. Mas o chapéu influía, sim, em nossa relação com a vida eterna.
Um dia, em 1917, eu soube que se morria. Nem todos, claro. Eu, papai, mamãe, meus irmãos não morreríamos, nunca. Só os outros. Às vezes, tento fazer uma antologia de mortos, dos meus mortos. O primeiro, ou a primeira, foi a menina da febre amarela. Ou por outra: — não foi a menina. Houve antes, um rapaz da rua, triste, asmático e cheio de espinhas na cara. Guardei o seu diminutivo: — Carlinhos. Todas as tardes, eu o via passar, de braço, com a noiva. Os dois iam de uma esquina a outra esquina. Lembro-me de que, certa vez, Carlinhos pagou-me sorvete de casquinha. Bem. E o fato é que, lá uma vez, o rapaz brigou com a menina. O motivo não sei, talvez ciúmes.
E ele a avisou:
— Olha. Amanhã, você vai ao meu enterro.
Ou a menina era geniosa ou não acreditou. Largou-o na calçada. Carlinhos saiu dali para a farmácia. Por acaso, eu estava lá, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Sempre que me via, ele passava a mão pela minha cabeça e me chamava de “batuta”. Desta vez, nem me olhou.
Disse para o homem da farmácia:
— Vou viajar. Vou fazer uma viagem.
Tomou o veneno, junto ao balcão. O homem da farmácia olhou sem entender nada. O freguês adernou e caiu, com as duas mãos no ventre e as entranhas em fogo. Ainda me pergunto se foi pó, líquido ou pastilha. Mas não importa. O farmacêutico começou a gritar. Apareceu, logo, uma multidão. Alguém me enxotou com uma palmada:
— Vai embora, anda, sai daí!
Foram avisar, correndo, à mãe do rapaz e à noiva. Quando, porém, as duas chegaram, ele estava morto. Lá de casa — ao lado da farmácia — eu ouvia os ataques.
Hoje, graças à capelinha, a dor tem uma disciplina, uma polidez, uma cerimônia prodigiosa. Não há mais ataques. Só na Zona Norte mais profunda, acima da Tijuca, talvez sejam ainda possíveis os velórios esganiçados, convulsivos.
Volto à farmácia. Meus irmãos maiores contaram, depois, tudo o que aconteceu. Primeiro, veio a mãe; depois, a noiva. A mãe entrou, atropelando os presentes. Atirou-se sobre o morto que lá estava, quieto, de pernas abertas, estirado no ladrilho. Por cima do filho, sacudia-o como se o agredisse, como se o odiasse. E, depois, rompe a noiva.
Vozes pediam:
— Não faça isso! Calma, minha senhora! Segura, aí, segura!
Os homens queriam arrastar uma e outra. A mãe, professora e viúva, escouceava. A noiva meteu as unhas na cara de alguém. E, finalmente, deixaram as duas em paz. Todos ficaram ali, parados, vendo aquele defunto possuído por duas mulheres. A professora montara no filho, com os dedos cravados no seus cabelos frios. E a noiva atracou-se com as pernas e os sapatos do ser amado. Estava, ali, com uma antecipação de quase quarenta anos, o puro Bandido Giuliano.
Mas como ia dizendo: — a noiva beijou os sapatos e, em seguida, os tirou e, não contente, arrancou as meias para beijar os pés nus e gelados.
Assim foi um suicida que me revelou a morte, e eu quase dizia: — foi um suicida que me ensinou a morrer. Quando Getúlio se matou, pensei na grande cena da farmácia. Imaginei que alguém, como a noiva antiga, podia beijar os seus sapatos ou, antes que o calçassem, os seus pés sem meias. Não me falem da carta-testamento, tão secundária diante do tiro no peito.
Bem me lembro do justo momento em que tive a notícia, pelo rádio, na voz de Heron Domingues. Getúlio morto. De repente, senti que Deus prefere os suicidas.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário