Bem me lembro de que, em janeiro de 1930, pensei muitas vezes naquela mãe de Aldeia Campista. Sim, a mãe da menina que morrera de febre amarela. Chamava-se d. Laura e era mulher de seu Clementino. Ao lado, moravam três mocinhas: Odete, Nair e Dulce (estou escavando a memória e desenterrando nomes como velha prata). A menina morrera (de febre amarela, já disse); estava no caixão pequenino, de arminho e vestida de anjo.
Vinte anos depois, um dos personagens de Vestido de noiva diria, lânguida e nostálgica: — “Enterro de anjo é mais bonito que de gente grande”. Esse personagem era Alaíde, a heroína da tragédia. Também se chamava Alaíde a filha mais velha de d. Laura e, portanto, irmã da menina morta. Eis o que eu queria dizer: — remontei, em Vestido de noiva, o velório de minha infância. E, por todo o meu teatro, há uma palpitação de sombras e de luzes. De texto em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa obsessão feérica que para sempre me persegue.
Ouço d. Laura gritando para o anjo de cera: — “Minha filha não morreu! Minha filha não morreu!”. Não morrer e nunca morrer. Em 29, quando saí do cemitério, baixou em mim esta certeza: — Roberto não estava morto, Roberto não morrera, Roberto não era o morto que acabava de ser enterrado. E logo veio outra e furiosa certeza: — um dia, eu veria Roberto, eu me encontraria com Roberto e diria muitas vezes o seu nome, eternamente o seu nome.
Há poucos meses, fui, com o Hélio Pellegrino, de automóvel, à Barra da Tijuca. É diante do mar que gosto de tecer as minhas fantasias fúnebres. No meio do caminho, paramos o carro e descemos. Ficamos no alto, olhando, sem palavras.
E eu, então, comecei a pensar nos que morreram e nos que vão morrer. Um dia, despertaremos entre os mortos. Eu veria Roberto. E veria minha avó, mãe de meu pai. Minha avó sabia fazer aquarelas; tinha um álbum de versos; pintava em pratos. Eu me lembro de uma de suas figuras; uma escrava, loura, de sandálias; outra: — uma morena de cântaro no ombro. E minha avó era linda. Dizem todos: — linda.
E morreu de parto, quando meu pai tinha oito anos de idade. Uma cesariana a teria salvo. Naquele tempo, porém, não se fazia cesariana no Brasil. Minha avó morreu e tão lúcida. As tias mais antigas contam a sua agonia. Gritou três dias e três noites. Morria, sabendo que morria. Primeiro, gritava — “Não quero morrer”. E, depois, exausta, não tinha mais forças para o grito. Mas repetia numa voz inaudível como o hálito: “Não quero morrer”.
Ao lado do Hélio Pellegrino, eu pensava, novamente, em Roberto. Poucos dias depois de sua morte, passei na avenida onde ele morava. Vi sua capa vazia; os chapéus; gravatas. E, de repente, me lembrei de que, no pronto-socorro, eu o vira com um lenço na mão. Por que não pensei em furtar o seu lenço usado? Depois da morte, por que não escondi o seu lenço, não o limpo, mas o sujo? Também não pensara em roubar o pijama que ele despira para a segunda e inútil operação? Que pobre ou que parente de enfermeira ganhara o último pijama, o pijama embebido de sua agonia e de sua morte?
Cinco anos depois, estava eu no consultório de um tisiólogo: — Aloísio de Paula. Minha irmã Stella, médica, me levara lá, por indicação do clínico Isaac Brown. Vejo Aloísio de Paula examinando a minha chapa, contra a luz; mostrava a lesão a Stella. Infiltração bem discreta. Por outras palavras: — era a tuberculose que tinha, então, p nome lindo, nupcial, de “peste branca”. Mais uma semana e eu entrava no sanatorinho de Campos do Jordão. Fiquei não num quarto particular, mas numa enfermaria de quinze ou vinte leitos.
Num instante, todo o sanatorinho dizia: — “Tem um jornalista aí”. O jornalista era eu. Um dia, um dos internados, Oswaldo não sei de que, avisou: — “Meu irmão chega amanhã”. E chegou mesmo. Eu o vi entrar, carregado, já com a dispnéia pré-agônica. Vinha para morrer e estava morrendo.
Ah, o irmão de Oswaldo tinha tantas cavernas que o fato de estrebuchar era um milagre respiratório, Eu me lembro de Oswaldo abrindo as malas e tirando as roupas, as camisas, as gravatas. Antes da doença, o moribundo era elegantíssimo. Setenta e duas horas depois, ele foi levado da enfermaria para o isolamento. Lá morreu, no mesmo dia. Não sei, não me lembro se teve ou não uma agonia de sangue.
Oswaldo foi enterrar o irmão e voltou, correndo, do cemitério. Eu o vejo chegar, com as ventas arregaladas. Arremessou-se para as roupas do morto e as possuiu, ali mesmo, à nossa vista. Atracava os paletós, as calças, as camisas, como um sátiro brutal; e dizia, arquejando de euforia: — “Foi Deus que mandou meu irmão para cá. Eu estava sem roupa. Andava de calça furada”. Virou-se e mostrou os fundilhos. O remendo aparecia, deslavado. No dia seguinte, estava ele namorando com o guarda-roupa do irmão.
A cena de Campos do Jordão pôs diante de mim a morte de Roberto. Eu tinha, de novo, dezessete anos. Já disse e aqui repito que sou um ressentido contra a minha adolescência. Não me vejo, não me reconheço nos meus atos, sentimentos e paixões adolescentes. Em 29, 30, fui outro e não eu mesmo. Fiz coisas que não se pareciam nada comigo. Por exemplo: — herdei ternos e gravatas de Roberto. Quando acabou o luto, eu os vesti. E o chapéu era dele também. A roupa parecia feita sob medida para mim. Não tive pena, nem remorso de andar vestido de Roberto. Ou por outra: — talvez, no primeiro momento, tenha sentido uma certa angústia, mas tão rala, tão escassa.
A angústia veio cinco anos depois, em Campos do Jordão. Por trás de Oswaldo estava eu, adolescente. Eu experimentando o paletó, eu escolhendo a gravata de Roberto. Metia a mão nos bolsos de Roberto e não me ocorria esta verdade doce, persuasiva e fatal: — eram os bolsos de Roberto. (Por que, ao menos, não guardara, para sempre, o lenço usado?)
Continuava, ali, diante do mar, com o Hélio Pellegrino. Depois o amigo me chama. Entrei no automóvel e pensando que era “outro”, e não eu, que vestira os ternos de Roberto. Eu sabia mais do que nunca que, um dia, verei todos os mortos da família, inclusive a avó que pintava, na louça, escravas de sandália. Mas onde, onde os verei? Talvez eu os encontre nas absurdas profundidades marinhas, onde as águas têm frio e sonham.
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