domingo, 3 de maio de 2009

Capítulo 27 - A Menina sem Estrela

Conheci, na minha infância, o Brasil dos velhos. Hoje, não. Hoje, por toda parte, o que se vê e o que se ouve é o alarido dos jovens. Não há velhos, ou por outra: — ninguém quer ser velho. Sujeitos de setenta anos adulam a juventude. Ainda on­tem dizia-me um setuagenário: — “O jovem tem razão, sempre”.
O ancião falava assim e tinha o olho rútilo e a salivação in­tensa. Achei graça, ou, por outra, não achei graça nenhuma. Não me ocorreu uma palavra, uma objeção, nada. Num escândalo mudo, apenas ouvia. E, de repente, passa por nós um rapaz, um latagão eufórico, solidamente belo como um bárbaro. O velho pareceu lambê-lo com a vista. Saiu atrás, num deslumbramento alvar.
Confesso: — esse pequeno episódio deixou-me uma impressão profunda. Penso em certos velhos que fazem uma promo­ção frenética dos novos. Pergunto: — não há, em alguns casos, uma certa pederastia retardatária, utópica, idealizada? Não estou afirmando nada; insinuo tão-somente um tema para a me­ditação dos outros.
Volto à minha infância. Na rua Alegre, não era ainda degra­dante ser velho. O sujeito podia ter, impunemente, setenta, oi­tenta anos. Conheci crioulos de cem anos. Ah, os veteranos da Guerra do Paraguai! Eram velhinhos ainda tesos. Estavam sempre mascando fumo de rolo e cuspiam negro. Eu, com sete, oi­to anos, achava os velhos muito mais fascinantes do que os jo­vens. Um dos nossos vizinhos era um ancião hemiplégico. Até a doença me parecia linda.
E a rua, os bondes, as sacadas, tudo era uma paisagem de velhos. Quando penso no Brasil de minha infância, me lembro, sem querer, de Confúcio. Vocês conhecem a história. Um dia, em certo jardim, uma virgem sonhava. De repente, veio um raio de sol e tocou-lhe o ventre. Assim nasceu Confúcio, filho de uma virgem com um raio de sol. Mas nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva.
Para mim, garoto de calça curta, acontecera algo parecido com Rui Barbosa. Era como se ele tivesse nascido com setenta anos, e já conselheiro, e já Águia de Haia. E, hoje, me dá uma certa pena notar que não há mais, como outrora, os setuagenários natos.
Em 1919, ia muito, lá em casa, um amigo do meu pai, tam­bém jornalista. Chamava-se Nepomuceno e, se não me engano, trabalhava no País ou na Gazeta de Notícias. Era velhíssimo. Vocês conhecem o nosso contemporâneo Salim Simão. Só fala aos berros e o seu suspiro é ainda um berro. Quando entro no Estádio Mário Filho e não ouço o seu berreiro, me sinto um frus­trado.
Nepomuceno era um Salim Simão das velhas gerações. Igual­mente ululante, seu bom-dia era uma agressão. E, quando apare­cia, eu vinha para perto, como um pequenino magnetizado. E o Nepomuceno dizia uma coisa que marcou toda a minha vida. Ainda o vejo, no meio da sala, atirando patadas e bramando: — ‘‘A opinião pública é louca! Louca!’’. Isso dito, aos arrancos, me assombrava. E eu, meio acuado pelos berros, acreditava piamente na demência tão rumorosamente anunciada.
E, para demonstrar a loucura da opinião pública, Nepomu­ceno falava da vacina obrigatória. Ouvi a mesma história umas cem vezes. Mais tarde, fui ler, nas velhas coleções da Biblioteca Nacional, o que acontecera na época. E, de fato, toda a cidade se levantara a favor da peste e contra a vacina; a favor das rata­zanas e contra Oswaldo Cruz; a favor da varíola e contra a saúde.
O que se disse de Oswaldo Cruz, nos lares, esquinas, bote­cos e retretas. Ninguém a seu favor e todos contra. Foi chama­do de escroque, moleque, ladrão e analfabeto. Cada geração tem um “inimigo do povo” de feitio ibseniano. Oswaldo Cruz foi o da sua. E, até hoje, não se entende por que o povo não o ca­çou, no meio da rua, a pauladas, como uma ratazana prenha. O clamor popular não era bastante. Houve um levante armado. E tudo por quê? Porque a opinião pública, repito, estava com a peste e disposta a matar e morrer pela peste.
Anos depois, morria Oswaldo Cruz de morte natural. Men­tira. Não foi natural. Morreu assassinado pela unanimidade. E, através dos anos, nunca mais me esqueci de Nepomuceno. Quando vejo o Salim, tenho vontade de dizer-lhe: — “Conheci um que berrava tanto quanto você”. Mas o tempo passou e, hoje, posso dizer que tive várias e patéticas experiências pessoais com a opinião pública.
O assassinato do meu irmão Roberto. O julgamento coin­cidiu com o meu aniversário. Eu fazia, se não me engano, de­zoito anos no dia 23 de agosto de 1930. Meses antes morrera meu pai; pode-se dizer que a mesma bala assassinara os dois. Meu Deus, não havia muito que discutir. Eis a questão: — po­dia alguém “matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”? Te­mos direito de matar o filho, ou a filha, ou a mulher do nosso inimigo?
Não assisti ao julgamento. Fiquei, em casa, ouvindo pelo rádio. Eis a verdade: — a opinião pública achava que se podia matar um dos filhos de Mário Rodrigues; não diretamente o pró­prio Mário Rodrigues, mas um dos filhos, e tanto podia ser Ro­berto como Mário, Mário como Milton, Stella como Nelson ou, até, a recém-nascida Dulcinha. Lembro-me de um jornal que re­sumia, no título, um juízo final: — “Justo atentado”. E, em ca­sa, antes de dormir, eu ficava pensando: — e a espinha serrada, por que não conseguiram extrair a bala? E o algodão nas nari­nas? E a filha ainda por nascer? E o meu pai morto?
O júri fez o que a opinião pública exigia. Eu estava, no meu canto, em casa, esperando o pior. E veio o resultado: — absol­vição, por uma maioria de três votos, se não me engano, três votos. O locutor dava berros triunfais. E o resultado mereceu uma ovação formidável. Um clima de auditório de rádio, de TV e mais de rádio do que tv. Naquele momento, instalou-se em mim uma certeza, para sempre: — a opinião pública é uma doente mental. E pensei numa fuga impossível. Viver e morrer numa ilha selvagem, só habitada pelos ventos e pe­lo grito das gaivotas.

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