quarta-feira, 6 de maio de 2009

Capítulo 30 - A Menina sem Estrela

De pé, ó vítimas da fome. Mas eu ia aprender muito com a miséria. Por exemplo: — aprendi que a fome não deixa nin­guém de pé, ninguém. Eu a conheci, minha família a conheceu. Enquanto duraram os oitocentos mil-réis, ainda tivemos pão e manteiga para o pão; e bolachinha de água e sal; e almoço e janta. Por algum tempo, ainda fizemos as três refeições, ou por outra: — quatro, se acrescentar o lanche.
A bolachinha era para o lanche. Bolachinha (com mantei­ga) e café com leite. De vez em quando, eu ficava, no meu can­to, perdido, meio alado. E ninguém podia imaginar que estava pensando no destino de nossa vitrola. Muitas vezes, pensei em dar um pulo no Mangue. Queria ver a vitrola na rua das mulhe­res. Segundo o Cadinhos, ela tocava dia e noite. Como o novo dono era luso, só punha fados. E a pungência, a plangência dos fados apaziguava o desejo do povo.
Até que gastamos o último tostão dos oitocentos mil-réis. Nada de emprego, nada. Fui, um dia, falar com o Costa Soares, na redação de O Globo. Era um bom homem e nos daria a mão, se pudesse. Na varanda, que pendia sobre o Largo da Carioca, pedi-lhe um emprego, qualquer um. Costa Soares foi de uma polidez irrepreensível; e eu podia sentir, por trás de suas pala­vras, a inútil compaixão. Mas me desiludiu. Por enquanto, na­da, nada era possível. Lá adiante, numa mesa, Roberto Marinho lia um jornal. Aquele tinha tudo e eu nada — foi o que pensei.
E veio a fome. Começamos a vender garfos, facas, pratos, terrinas, toalhas, o diabo. Mas era a fome. Catava-se, lá em casa, tudo que era possível de venda. Lembro-me da última lata de azeite. Azeite serve de manteiga, azeite finge de manteiga. E, então, nós passávamos azeite no pão. Ótimo, ótimo. Até que a lata ficou vazia. Foi virada, revirada e não pingou nada. Então, passa­mos a comer pão sem manteiga e sem azeite (enquanto houve pão).
E nem imaginávamos que Euricles de Mattos teria de mor­rer, para que um de nós (Mário) entrasse no Globo. Mas eis o que queria dizer: — fui a fome mais desfibrada que se possa ima­ginar. Lembro-me do Carnaval. Para economizar três tostões, vim a pé da cidade até o Leme. No Leme, apanharia o bonde e gastaria cem réis. E compraria três pães de tostão.
Se cruzasse com o Walther Moreira Salles, eu o olharia sem revolta, ira ou inveja. Bem sei que, naquela ocasião, o Walther Moreira Salles não seria Walther Moreira Salles. Mas admitindo que passasse por mim num carro suntuário, seria incapaz de odiá-lo. Eis a verdade: — a fome varre, a fome raspa qualquer sentimento forte. O ódio exige boa alimentação e repito: — para odiar, o sujeito precisa de um sanduíche, pelo menos um sanduíche.
Lembro-me de que, certa vez, encontrei o André Romero, velho jornalista, que trabalhara comigo na Manhã, primeiro jor­nal do meu pai. Romero veio para mim de braços abertos. Ora, tamanha era minha depressão que um sorriso, ou um bom-dia, me empolgava. Crispei a mão no seu braço, numa emoção ab­surda (eu ia acabar chorando, meu Deus, eu ia acabar choran­do). E o grande momento do nosso encontro foi no fim, quan­do ele propôs: — “Vamos almoçar? Te convido. Vamos!”.
Foi fígado. Eu preferia, confesso, bife com batatas fritas. Mas a fome não é muito seletiva. Comeria qualquer coisa, até pão sem manteiga. Pão sem manteiga é triste, mas eu o come­ria. Ah, me lembro da travessa imensa, com fígado e cebolada. Era uma casa de pasto, ali, atrás da Lapa. Nunca vi tanta mosca na minha vida. E, de repente, um casal de moscas amou à nossa vista. Comecei a comer. Viro-me para o garçom: — “Quer me trazer pires com manteiga?”. E minha voz, a minha inflexão, a minha cara, tudo devia ter a humildade abjeta da fome.
Comi com um furioso élan. E, de repente, pensei em mi­nha mãe e nas minhas irmãs. Tinha mais pena das mulheres da família. Minha mãe ainda dava o seio à caçula. E eu punha mais manteiga no pão, arquejante de volúpia. Continuava pensando nas meninas, lá em casa, sem azeite para passar no pão. Acabei, afrontado. E me dilacerava de felicidade. E, ao mesmo tempo, não me saíam da cabeça minha mãe e minhas irmãs.
Não sei se houve sobremesa. Se bem me lembro, Romero vira-se para mim e fala: — “Não quero sobremesa. Você quer?”. Respirei fundo: — “Não”. E, ao mesmo tempo, começava a ter náuseas do fígado. Saímos. Em casa, não disse uma palavra so­bre o almoço. Lembro-me de que, nessa noite, acendi a vela e olhei: — um percevejo. Depois, viriam os outros. Mas aquele estava ali, sozinho.
Não confundam percevejo com asseio. É a fome que o fa­brica. Um Walther Moreira Salles, mesmo imundo, não será mor­dido por um percevejo. O último que eu vira era ainda de Al­deia Campista, nos primeiros anos da minha infância. Depois, meu pai tornou-se diretor de jornal, dono de jornal. Passamos da rua Alegre para a Tijuca, e, mais tarde, para Copacabana. Nos­sa vida mudou. A casa em que moramos, na rua Joaquim Nabuco, era um palácio. E tínhamos hábitos e despesas de família mi­lionária. Uma vez, o Roberto Marinho dizia a mim e a Mário: — “Vocês tomavam táxi para atravessar a rua”. Era uma verda­de exagerada, violentada, mas uma certa verdade.
Não matei o percevejo. Era tão pouco Raskolnikov, e mi­nha fome tinha tal impotência para a reação que não o esma­guei na unha. Eu o aceitei com um fatalismo quase doce. No dia seguinte, passei na Noite Ilustrada. Conhecia lá o Aquarone e pedi-lhe um emprego. Nada, nada. Ofereci-me para escre­ver de graça, artigos assinados. Nem assim.
Continuou o desemprego. Muitas vezes senti as faces ar­dendo como um esbofeteado. Era apenas a febre da fome. Mi­nha distração era ir para a praça Mauá. Ficava olhando o perfil dos navios, o mastro. Nunca me ocorreu a idéia de ser faxinei­ro, de lavar pratos. Só queria jornal. Pensava no Globo. Quan­tas vezes estive para falar com Roberto Marinho. Mas ouvia di­zer que ele não mandava nada. O Globo era Euricles de Mattos. Lá dentro, sua vontade era a lei. Certa noite ouvi o Eloy Pontes esbravejar, no meio da escada da Crítica — “Roberto Marinho, que é um cretino, ganha mais do que eu!”.
Estou vendo Eloy Pontes. Sua cara era a própria máscara mortuária de Beethoven. E de Euricles de Mattos sabia apenas o seguinte: — um probo. Ninguém mais incorrupto. Era, po­rém, um jornalista de velhas gerações. Fazia um jornal honrado como ele, e de uma mediocridade desesperadora, como ele. Um dia, Euricles de Mattos morreu e Roberto Marinho assume a di­reção. Era a esperança.

Um comentário:

Carol Freitas disse...

Olá!

Vi que vc linkou lá no meu Blog..Seja bem vinda!

Bjs!