De pé, ó vítimas da fome. Mas eu ia aprender muito com a miséria. Por exemplo: — aprendi que a fome não deixa ninguém de pé, ninguém. Eu a conheci, minha família a conheceu. Enquanto duraram os oitocentos mil-réis, ainda tivemos pão e manteiga para o pão; e bolachinha de água e sal; e almoço e janta. Por algum tempo, ainda fizemos as três refeições, ou por outra: — quatro, se acrescentar o lanche.
A bolachinha era para o lanche. Bolachinha (com manteiga) e café com leite. De vez em quando, eu ficava, no meu canto, perdido, meio alado. E ninguém podia imaginar que estava pensando no destino de nossa vitrola. Muitas vezes, pensei em dar um pulo no Mangue. Queria ver a vitrola na rua das mulheres. Segundo o Cadinhos, ela tocava dia e noite. Como o novo dono era luso, só punha fados. E a pungência, a plangência dos fados apaziguava o desejo do povo.
Até que gastamos o último tostão dos oitocentos mil-réis. Nada de emprego, nada. Fui, um dia, falar com o Costa Soares, na redação de O Globo. Era um bom homem e nos daria a mão, se pudesse. Na varanda, que pendia sobre o Largo da Carioca, pedi-lhe um emprego, qualquer um. Costa Soares foi de uma polidez irrepreensível; e eu podia sentir, por trás de suas palavras, a inútil compaixão. Mas me desiludiu. Por enquanto, nada, nada era possível. Lá adiante, numa mesa, Roberto Marinho lia um jornal. Aquele tinha tudo e eu nada — foi o que pensei.
E veio a fome. Começamos a vender garfos, facas, pratos, terrinas, toalhas, o diabo. Mas era a fome. Catava-se, lá em casa, tudo que era possível de venda. Lembro-me da última lata de azeite. Azeite serve de manteiga, azeite finge de manteiga. E, então, nós passávamos azeite no pão. Ótimo, ótimo. Até que a lata ficou vazia. Foi virada, revirada e não pingou nada. Então, passamos a comer pão sem manteiga e sem azeite (enquanto houve pão).
E nem imaginávamos que Euricles de Mattos teria de morrer, para que um de nós (Mário) entrasse no Globo. Mas eis o que queria dizer: — fui a fome mais desfibrada que se possa imaginar. Lembro-me do Carnaval. Para economizar três tostões, vim a pé da cidade até o Leme. No Leme, apanharia o bonde e gastaria cem réis. E compraria três pães de tostão.
Se cruzasse com o Walther Moreira Salles, eu o olharia sem revolta, ira ou inveja. Bem sei que, naquela ocasião, o Walther Moreira Salles não seria Walther Moreira Salles. Mas admitindo que passasse por mim num carro suntuário, seria incapaz de odiá-lo. Eis a verdade: — a fome varre, a fome raspa qualquer sentimento forte. O ódio exige boa alimentação e repito: — para odiar, o sujeito precisa de um sanduíche, pelo menos um sanduíche.
Lembro-me de que, certa vez, encontrei o André Romero, velho jornalista, que trabalhara comigo na Manhã, primeiro jornal do meu pai. Romero veio para mim de braços abertos. Ora, tamanha era minha depressão que um sorriso, ou um bom-dia, me empolgava. Crispei a mão no seu braço, numa emoção absurda (eu ia acabar chorando, meu Deus, eu ia acabar chorando). E o grande momento do nosso encontro foi no fim, quando ele propôs: — “Vamos almoçar? Te convido. Vamos!”.
Foi fígado. Eu preferia, confesso, bife com batatas fritas. Mas a fome não é muito seletiva. Comeria qualquer coisa, até pão sem manteiga. Pão sem manteiga é triste, mas eu o comeria. Ah, me lembro da travessa imensa, com fígado e cebolada. Era uma casa de pasto, ali, atrás da Lapa. Nunca vi tanta mosca na minha vida. E, de repente, um casal de moscas amou à nossa vista. Comecei a comer. Viro-me para o garçom: — “Quer me trazer pires com manteiga?”. E minha voz, a minha inflexão, a minha cara, tudo devia ter a humildade abjeta da fome.
Comi com um furioso élan. E, de repente, pensei em minha mãe e nas minhas irmãs. Tinha mais pena das mulheres da família. Minha mãe ainda dava o seio à caçula. E eu punha mais manteiga no pão, arquejante de volúpia. Continuava pensando nas meninas, lá em casa, sem azeite para passar no pão. Acabei, afrontado. E me dilacerava de felicidade. E, ao mesmo tempo, não me saíam da cabeça minha mãe e minhas irmãs.
Não sei se houve sobremesa. Se bem me lembro, Romero vira-se para mim e fala: — “Não quero sobremesa. Você quer?”. Respirei fundo: — “Não”. E, ao mesmo tempo, começava a ter náuseas do fígado. Saímos. Em casa, não disse uma palavra sobre o almoço. Lembro-me de que, nessa noite, acendi a vela e olhei: — um percevejo. Depois, viriam os outros. Mas aquele estava ali, sozinho.
Não confundam percevejo com asseio. É a fome que o fabrica. Um Walther Moreira Salles, mesmo imundo, não será mordido por um percevejo. O último que eu vira era ainda de Aldeia Campista, nos primeiros anos da minha infância. Depois, meu pai tornou-se diretor de jornal, dono de jornal. Passamos da rua Alegre para a Tijuca, e, mais tarde, para Copacabana. Nossa vida mudou. A casa em que moramos, na rua Joaquim Nabuco, era um palácio. E tínhamos hábitos e despesas de família milionária. Uma vez, o Roberto Marinho dizia a mim e a Mário: — “Vocês tomavam táxi para atravessar a rua”. Era uma verdade exagerada, violentada, mas uma certa verdade.
Não matei o percevejo. Era tão pouco Raskolnikov, e minha fome tinha tal impotência para a reação que não o esmaguei na unha. Eu o aceitei com um fatalismo quase doce. No dia seguinte, passei na Noite Ilustrada. Conhecia lá o Aquarone e pedi-lhe um emprego. Nada, nada. Ofereci-me para escrever de graça, artigos assinados. Nem assim.
Continuou o desemprego. Muitas vezes senti as faces ardendo como um esbofeteado. Era apenas a febre da fome. Minha distração era ir para a praça Mauá. Ficava olhando o perfil dos navios, o mastro. Nunca me ocorreu a idéia de ser faxineiro, de lavar pratos. Só queria jornal. Pensava no Globo. Quantas vezes estive para falar com Roberto Marinho. Mas ouvia dizer que ele não mandava nada. O Globo era Euricles de Mattos. Lá dentro, sua vontade era a lei. Certa noite ouvi o Eloy Pontes esbravejar, no meio da escada da Crítica — “Roberto Marinho, que é um cretino, ganha mais do que eu!”.
Estou vendo Eloy Pontes. Sua cara era a própria máscara mortuária de Beethoven. E de Euricles de Mattos sabia apenas o seguinte: — um probo. Ninguém mais incorrupto. Era, porém, um jornalista de velhas gerações. Fazia um jornal honrado como ele, e de uma mediocridade desesperadora, como ele. Um dia, Euricles de Mattos morreu e Roberto Marinho assume a direção. Era a esperança.
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Um comentário:
Olá!
Vi que vc linkou lá no meu Blog..Seja bem vinda!
Bjs!
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