E eis que o brasileiro está fazendo a sua autocrítica. Toda semana, alguém faz o próprio retrato, a convite de Manchete. Seria fascinante que um dos convidados declarasse à queima-roupa, alçando a fronte: — “Eu sou um pulha”. Isso, dito assim, dessa forma sucinta, translúcida, inapelável, havia de arrepiar o leitor e, ao mesmo tempo, deslumbrá-lo. Até agora, que eu saiba, ninguém se dispôs a essa sinceridade abnegada e brutal. Cada autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigido pelo próprio defunto.
O sujeito se apresenta, em Manchete, como se fosse no mínimo o Disraeli. O último a falar foi um dos nossos autores mais ilustres, o único talvez de ressonância mundial: — Pedro Bloch. E, desde a primeira linha, verificamos que ninguém ama tanto Pedro Bloch como o próprio Pedro Bloch. O fato de ser um Pedro Bloch nato devia dar-lhe a naturalidade de um velho hábito. Em absoluto e pelo contrário: — não há tal hábito. Pedro Bloch está cada vez mais nervoso, mais fremente, mais dispnéico de ser ele mesmo e não outro qualquer.
Li e reli sua autocrítica. E só esbarrei, só tropecei em virtudes. Não tem defeitos? Exatamente: — nenhum defeito. No meio da leitura, só uma coisa espanta o público: — por que Pedro Bloch não se demite da vida prática e não se transfere, de sandálias, para um vitral? Sim, um vitral atravessado de luz?
Falo da autocrítica de Pedro Bloch e penso nos primeiros tempos de O Globo. Tudo em mim era turvo, envenenado, cruel, vingativo. Ou por outra: — tudo, não. Por vezes, queria amor, dar e receber amor. Mas o amor era um momento, e tão breve, tão escasso. Fui, já disse, naqueles tempos, o Raskolnikov de Roberto Marinho.
Por vezes, deixava de trabalhar e punha-me de esguelha a olhar “o querido diretor”, como o chamávamos (hoje na tv Globo, é “o mais velho”, nome que dá uma sensação de velho chefe índio). Eu era ressentido até contra os sapatos de Roberto Marinho. E, além dos sapatos, os ternos, as camisas, as gravatas. Eu tinha um único terno, um único par de sapatos. Durante três ou quatro anos, não pensei, em momento nenhum, na minha aparência pessoal. Andava de sapatos sem meias, porque não tinha meias. E já contei que passava três, quatro dias com a mesma camisa.
Talvez o meu ressentimento tenha começado contra o guarda-roupa de Roberto Marinho. Um dia, soube que ele ganhava, por mês, sete contos e quinhentos. Não sei por que associei as duas imagens: — Roberto Marinho e o rei da Abissínia. Depois de vários anos de O Globo, houve um episódio, desses que o homem não esquece nunca mais. É uma experiência que se tornou obsessiva para mim e que se incorporou à minha literatura.
Mas vamos ao fato: — um dia, Roberto Marinho chama meu irmão, Mário Filho, e os dois conversam naquela varanda que dava para o Largo da Carioca. Roberto começa a falar de mim. Disse que eu precisava cuidar mais de mim mesmo. Falou do meu desleixo, do meu cabelo, da minha roupa. Eu andava de barba por fazer. E, por fim, disse tudo: — “Ontem, o seu irmão estava cheirando mal”.
Mais tarde, numa mesa no Café Nice, junto do espelho, Mário teve uma conversa comigo. Com muito tato, muita doçura, foi falando: — “Roberto me disse isso, assim, assim”. Recebi um baque no peito. Ninguém sente o próprio cheiro; mas acreditei. Olhei-me no espelho e pensava: — “É isso mesmo. Deve ser verdade”.
Daí a pouco, levantei-me. Queria ficar só. Fui, a pé, até a praça Mauá. Eis o que dizia a mim mesmo: — “Não sou eu. É o terno. É o terno que cheira mal”. O que ainda hoje me espanta é que a minha humilhação não foi, de momento, tão funda e tão desesperadora. Eu viria sofrer, em verdade, mais tarde. Agora mesmo, sofro ainda.
Naquele tempo, não me importaria de me cobrir de trapos imundos. A minha obsessão era trabalhar para dar dinheiro em casa. E só. Disse que a minha vida não tinha amor, nenhum amor. Não é bem assim. O dinheiro que levava para minha mãe era amor. O meu trabalho era amor. E o que me espantava, a caminho da praça Mauá, era que eu não estava ofendido, eu não estava humilhado. Cheirava mal e não começara a sofrer.
Na verdade, na verdade, estava muito mais ferido do que imaginava; e ferido para sempre. Através dos anos, e já trabalhado pelo sofrimento, transpus o episódio para o conto, o romance e ainda hei de remontá-lo no teatro. No meu livro O casamento, há um Xavier que um amigo chama de lado e começa: — “Olha. Vou te dizer uma coisa. Mas promete que não fica zangado?”. O Xavier prometeu. E o outro continua: — “É o seguinte: — talvez porque você só use um terno (eu vejo você sempre com este terno), o fato é que...”. Suspense de uma pausa e a palavra definitiva: — “Você, às vezes, até cheira mal”.
O Xavier põe no outro um olho de puro terror. Eis o que eu queria dizer: — esse pobre-diabo de um terno só sou eu. Numa história de A vida como ela é..., um sujeito diz ao outro: — “Não sei se é porque você usa sempre o mesmo terno. O fato é que você, às vezes, cheira mal. Queria te avisar, porque sou teu amigo”. A vítima suspira: — “Obrigado, fulano”. E como acaba a história?
O sujeito do terno só aceita, como verdade última e eterna, que cheirava mal mesmo. Era cobrador de uma firma. Acabava de apanhar dinheiro no banco para o pagamento do pessoal. E decide ficar com dois mil contos e não sei quantos quebrados. Chama um táxi e diz para o chofer: “Você está por minha conta. Dinheiro há, dinheiro há”. Desde menino, o táxi era a sua mais doce e secreta utopia. Andou um mês de táxi. E, no fim, fez as contas com o chofer e brada: — “Vamos dar a última volta”. O carro parte. E, então, ele puxa o revólver de cobrador (tinha porte de arma), enfia o cano na boca e puxa o gatilho.
Aí estão os dois reescritos, em não sei quantas páginas: — eu e Roberto Marinho. Até que caio doente. Doente para morrer. Minha cama dava para o espelho. Via em cada olho um halo negro; as minhas faces estavam escavadas; e tinha a sensação de que olhava o meu próprio cadáver. Pedi, pelo amor de Deus, que cobrissem o espelho com um lençol. E foi aí que Roberto Marinho me salvou a vida.
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