domingo, 10 de maio de 2009

Capítulo 34 - A Menina sem Estrela

De vez em quando, me pergunto: — “Que fim levou o Isaac Brown?”. Era médico e, ao mesmo tempo, chefe de taquígrafos da Câmara. Em 1934, quando caí doente, foi chamado por minha irmã Stella. E lá vinha ele, a qualquer hora do dia e da noite, da Tijuca para Ipanema. Morávamos, então, na rua Pru­dente de Morais, sobrado, quase esquina com Montenegro.
Bem sei que a medicina é, hoje, um voraz, um escorchante sacerdócio. E Brown nunca me cobrou um tostão, nunca. Vi­nha da Tijuca, o que era quase outro país, quase outro idioma. Lembro-me da primeira vez em que entrou lá em casa. Era de uma bondade grave, quase triste. Pôs o ouvido nas costas, de um lado e de outro. Eu o vejo, ainda mais grave e ainda mais triste, dizendo: — “Sinais discretos”.
O que se escondia, ou, por outra, o que não se escondia por trás da suavidade da voz e das maneiras, era uma doença mortal. Eu estava tuberculoso. E o dr. Brown foi, na minha vi­da, um momento da bondade humana. Ao entrar na sala, vira a miséria; no corredor, a miséria; no quarto, a miséria. Falou com o radiografista, que não cobrou a chapa; falou com o Aloísio de Paula, que também não me cobrou a consulta. E ainda arranjou remédios, tudo de graça.
Com 35, quarenta de febre, ninguém tem medo. Naquela época, os jornais chamavam a tuberculose pelo nome nupcial, voluptuoso e apavorante de “peste branca”. Hoje, não. Hoje, há lesões que somem em quinze dias. Em 1934, porém, havia ainda o terror. Lembro-me de um vizinho que apanhou, como então se dizia, uma “fraqueza”. Ao saber que estava tuberculo­so, chorou três dias e três noites. Nem começou o tratamento. Ao amanhecer do quarto dia, meteu, como Getúlio, uma bala no peito. E seu feio medo descansou na morte.
Se me perguntassem por que fiquei doente, diria apenas: — fome. Claro que entendo por fome a soma de todas as priva­ções e de todas as renúncias. Não tinha roupa ou só tinha um terno; não tinha meias e só um par de sapatos; trabalhava demais e quase não dormia; e quantas vezes almocei uma média e não jantei nada? Tudo isso era a minha fome e tudo isso foi a minha tuberculose.
E mais: eu estava sem auto-estima. Não tinha amor, nenhum amor por mim mesmo. Certa vez, descia as escadas de O Globo e cruzo com um boxeur e meu amigo de infância, o Camarão. Ele solta um berro jucundo e fraternal: — “Filósofo! Filósofo!”. Os outros também me chamavam de “filósofo” por causa do meu desleixo agressivo e constrangedor. E ainda outros pergun­tavam, numa curiosidade séria: — “Esse cara é maluco?”.
Brown e Aloísio de Paula achavam que eu devia ir para Cam­pos do Jordão. Segundo se dizia, inclusive os dois médicos, o clima de lá era uma maravilha. Aloísio de Paula tinha uma dra­mática experiência pessoal. Fora doente pulmonar e curara-se em Campos do Jordão. Imediatamente Brown escrevia para o Sanatorinho pedindo uma vaga gratuita. Vejam vocês: — gra­tuita.
Ele achava que eu não podia pagar nada. Seu amigo de Cam­pos do Jordão, e interno do Sanatorinho, dr. Hermínio, respon­deu dias depois: — “Arranjei uma vaga de indigente. Pode man­dar o homem”. Era eu o indigente; e teria o meu teto, a minha cama e meu pão, sem pagar nada, graças à minha indigência. Bem me lembro do dia em que subi. Talvez não voltasse, talvez morresse lá.
Mas havia uma dúvida: — e Roberto Marinho? Ele teria que dar licença, com vencimentos integrais. Mas eu imaginava: — “Apenas licença e sem vencimento, não serve”. Não podia su­bir, sem um tostão no bolso. Meu irmão Mário Filho foi falar com o “querido diretor”. Na mesa grande, Roberto ouvia e, ao mesmo tempo, fazia desenhos, a lápis, num papel. Mário disse tudo. E quando acabou, Roberto, sem parar de desenhar, res­pondeu: — “Claro. Continua recebendo, do mesmo jeito. O tempo que for preciso. Quero que fique bom. O resto não inte­ressa”.
Na viagem, de trem, tive remorso e vergonha. Quase todos os dias, ia para o arquivo e, lá, dizia horrores do diretor. Era uma besta, um analfabeto, um cretino e não sei mais o quê. Roberto fizera outro jornal, não euclidiano. Antes dele, a página de es­porte de O Globo era algo de antigo, obsoleto, nostálgico, como o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Roberto chamou Má­rio Filho e tudo mudou. O futebol, o boxe, o basquete encon­traram todo um novo tratamento plástico, lírico, dramático.
Isso aconteceu no esporte e no resto. Mas Roberto não mu­dou sem ferir, sem humilhar uma rotina sagrada. Os velhos, os velhos. Eles ficavam, no canto, rosnando os seus rancores ou entretidos com velhíssimas nostalgias. Dizia-se de Roberto: — “Não entende nada, não sabe nada”. E agora, no trem, vinha-me uma vergonha tardia, um remorso inútil. Ao mesmo tempo pensava na morte. E se eu morresse em Campos do Jordão?
Só não queria a morte de sangue. Já em Campos do Jordão, fui, certa vez, testemunha de uma cena que ainda hoje está em mim. Vejo uma moça entrando numa sala. Ela pára. O rádio to­cava, se bem me lembro, uma rumba. A mocinha faz um movi­mento de dança. Ia visitar o namorado. Mas como eu ia dizen­do: — dá uns passos e sente um gosto esquisito. Põe o dedo na língua e olha: — saliva e sangue. A hemoptise começava. Veio a primeira golfada. Nunca imaginei que o sangue pudesse ser tão vermelho. Todos correram. A moça foi carregada, deitada numa cama. Quando o médico veio, pedia, entre uma golfada e outra: — “Doutor, me salve, doutor!”. O sangue não parava, nem parou. Morreu ao amanhecer. Estava morta, e teve uma úl­tima golfada de vida.

Nenhum comentário: